22 julho 2009

Uma Encíclica que irrita

«Caridade na Verdade» é um texto altamente irritante. É isso mesmo: um manual para o desassossego

Lembro-me muitas vezes da banda-desenhada cheia de humor de Quino, em que a irrequieta e incisiva Mafalda está com um ar abstracto e imperscrutável e diz que está a parecer-se com uma Encíclica Papal.
É uma forma engraçada de pôr o dedo na ferida, pois o grande risco é, de facto, o da recepção "abstracta e imperscrutável"que fazemos de textos que são afinal de uma impressionante concretude, agudeza e profecia.

Por vezes sinto que fazemos das "Encíclicas Papais" um género literário, altamente respeitável, mas inofensivo. A vida continua a correr com o pragmatismo do costume, indiferente quanto baste ao horizonte ideal que a tradição cristã nos aponta.

Talvez por isso, me apeteça saudar um pequeno texto de Henrique Raposo, que me incomodou muito, mas que, não posso negar, me tornou mais atento no acolhimento da Encíclica ("Expresso" (11/07/2009).

Diz o seguinte: «Não tenho problemas com o Papa, e até gosto de católicos. Mas há uma coisa que me irrita no Papa: é quando ele se põe a trazer Marx para o Evangelho. Aquilo que o Papa tem dito sobre a - suposta - falta de ética do capitalismo não ficaria mal na colectânea dos Summer hits de Francisco Louçã. Não vou aqui desconstruir a falácia antiliberal que está presente na Igreja Católica. Deixo somente uma pergunta: no "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" qual é a parte que o Papa não entende?».

É evidente que este autor entende muito pouco do cristianismo. Em vez de Marx, ele deveria perceber que o Papa liga-se à tradição bíblica e Evangélica mais genuínas, aos Padres da Igreja e a todo o extraordinário património de pensamento e acção no campo da solidariedade humana de que a Doutrina Social da Igreja tem sido esteio. Mas numa coisa Henrique Raposo tem razão: Bento XVI irrita e esta sua encíclica, "Caridade na Verdade" é um texto altamente irritante. É isso mesmo: um manual para o desassossego.

José Tolentino Mendonça

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15 julho 2009

Para ver mais longe do que a crise

D. Manuel Felício e a nova Encíclica do Papa Bento XVI

Depois de uma encíclica sobre Deus – “Deus Caritas est” (2005) e outra sobre a Esperança que deve animar todos os construtores da História – “Spe salvi” (2007), o Papa Bento XVI acaba de publicar, com data de 29 de Junho e apresentação pública de 7 de Julho, a sua terceira encíclica, esta sobre a questão social (“Caritas in veritate”).
Aparece esta carta papal num momento de crise generalizada em todo o mundo – crise financeira, crise económica, mas sobretudo crise de valores e de sentido para a vida das pessoas individualmente consideradas e também no tecido das suas relações sociais.
Mas a crise também pode ser oportunidade e nós já nos habituámos a ouvir muitos actores da nossa sociedade, principalmente os fazedores de opinião, a dizer que, depois desta crise, nada ficará igual, que o desenvolvimento baseado no puro consumismo não é sustentável e, portanto, não tem futuro, que as pessoas têm de se converter a novos hábitos de vida, sobretudo quanto à utilização dos recursos oferecidos pela natureza que não são inesgotáveis.
A nova encíclica, nos seus 79 números, sugere caminhos alternativos para o percurso das pessoas e das sociedades em direcção a uma nova ordem social.
De entre eles sublinho dois que, se forem levados a sério, abrem portas ao novo futuro que todos desejamos.
Primeiro deles: não é qualquer desenvolvimento ou o desenvolvimento pago a qualquer preço que nos interessa. Só nos interessa o desenvolvimento humano integral. E este é caracterizado na encíclica como sendo uma vocação para o progresso que leva as pessoas a realizar, conhecer e possuir mais para serem mais (ver nº 18). Por sua vez, para o subdesenvolvimento, que infelizmente continua a afectar grande número de pessoas e povos, é apontada uma causa endémica. Essa causa é a falta de fraternidade entre as pessoas e os povos (ver nº19).
Ora, os modelos de criação e distribuição de riqueza que temos e, em particular, o fenómeno mais recente da globalização, entregues a si mesmos e sem qualquer regulação, provaram já que não são capazes de promover a fraternidade, antes, pelo contrário, têm gerado cada vez mais desigualdades e maior afastamento das pessoas e grupos de pessoas entre si.
A encíclica conclui que a vocação à fraternidade vem de Deus e só Ele a pode levar ao seu pleno cumprimento. Portanto, desenvolvimento integral sem Deus é impensável.
Segundo: Os mercados financeiros e outros não podem continuar sem regulação, como tem acontecido até agora, única e simplesmente entregues à sua lógica interna, que já provou ser geradora de muita perversidade. Lembra a encíclica que é preciso introduzir ética nos mercados e é preciso também criar uma autoridade internacional competente e com meios para exercer a sua necessária função reguladora. Fala mesmo na necessidade de ser criada uma autoridade política mundial (ver nº42).
Esta e outras medidas estão a ser exigidas como resposta à crise, mas principalmente para inaugurar uma nova ordem mundial que promova a autêntica humanização da sociedade.
Chega a encíclica do Papa numa hora crucial para a Humanidade, uma hora em que a “a crise nos obriga a projectar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e a encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas e a rejeitar as negativas” (nº21).
Os critérios e as sugestões nela apontados são contributo decisivo não só para superar a crise, mas sobretudo para ajudar a cumprir a utopia de modelos de sociedade alternativos àquele em que vivemos e que nos foi apresentado como promessa de resposta para todos os anseios humanos e solução para todos os problemas.
Mas, de facto, a promessa não se cumpriu.

+Manuel Felício, Bispo da Guarda

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14 julho 2009

Uma Igreja presente ao mundo

A primeira encíclica social de Bento XVI teve de esperar pela evolução da grave crise económica global, originada numa crise financeira onde a falta de ética se fez sentir de maneira chocante. (Francisco Sarsfield Cabral)

E, não por acaso, a encíclica Caritas in Veritate foi divulgada nas vésperas do encontro do G8 em Aquila, Itália. Após a reunião do G8, o Presidente Obama foi recebido em audiência, pelo Papa.
Estes factos mostram que a Igreja quer estar presente ao mundo e tem uma palavra a dizer sobre ele. Não que a Igreja possua soluções técnicas, políticas ou económicas. Mas tem algo mais importante: é "perita em humanidade", como dizia Paulo VI. A Doutrina Social da Igreja é teologia moral e por isso oferece uma visão integral do homem e do desenvolvimento. Este jamais pode desligar-se dos valores fundamentais, sob pena de deixar de ser desenvolvimento.

Obama e o Papa

O encontro de Bento XVI com Barack Obama evidencia a importância do diálogo dos católicos com pessoas de outras religiões ou de nenhuma religião, procurando tornar menos penosa a vida dos homens. Diálogo que a encíclica considera necessário para o progresso da humanidade.

Recorde-se que surgiram muitas críticas de católicos quando Obama foi convidado a falar na Universidade Católica de Notre Dame, nos Estados Unidos. Isto porque o presidente americano admite o aborto. Simplesmente, Obama parece ser um homem de boa vontade - e com pessoas assim é possível o diálogo, por muito divergentes das nossas que sejam as suas ideias. E, de facto, o diálogo do Papa com Obama correu bem. É uma lição que convém não esquecer.

Dimensão teológica
A publicação da Caritas in Veritate por altura da reunião do G8 foi um gesto de oportunidade. Nessa reunião até se deram alguns passos positivos no apoio à agricultura dos países pobres, indo ao encontro do que a Igreja há muito reclama.

Mas receio que a encíclica, em geral recebida de modo favorável, possa ser insuficientemente entendida na sua profunda dimensão teológica. Embora rica em propostas, pistas e sugestões, a Caritas in Veritate vale, acima de tudo, pela fundamentação antropológica e teológica que traz à Doutrina Social da Igreja. A encíclica liga de forma exemplar as questões mais concretas a uma concepção forte do que é a pessoa humana.

Ora esta ligação implica um texto longo e denso, a que a nossa cultura mediática, sensível a slogans e a simplismos redutores, é geralmente alérgica. Naturalmente, aquilo que os meios de comunicação social colheram na encíclica teve sobretudo a ver com propostas concretas de Bento XVI, muitas delas já apresentadas por anteriores papas - como foi o caso da criação de uma autoridade política mundial para enquadrar alguns aspectos da globalização.

Contra o relativismo

Tais propostas são importantes, mas não esgotam a Caritas in Veritate. O essencial está no aprofundamento antropológico e teológico das questões que a encíclica aborda. E na fundamentação metafísica das mensagens éticas que transmite.

Trata-se, assim, de um texto típico de Bento XVI. Há muito que o teólogo Ratzinger tem como principal alvo das suas críticas o relativismo, a ideia - filosófica, mas com grande expressão prática no mundo actual - de que tudo se equivale, nada sendo susceptível de sólida justificação. No plano moral, esta visão das coisas tem, ou pode ter, consequências devastadoras. É que uma "concepção débil da pessoa" (expressão de J. Ratzinger) é incapaz de dar força aos direitos humanos e às exigências éticas de fundo.

Francisco Sarsfield Cabral, Jornalista

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Um mundo de reacções

A encíclica “Caritas in veritate”, de Bento XVI, gerou um pouco por todo o mundo uma verdadeira chuva de reacções, com os mais variados elogios, que chegaram mesmo ao ponto de defender a atribuição de um prémio Nobel da Economia, pelo texto.



As reacções começaram logo no dia da publicação do documento. O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. Jorge Ortiga, em Fátima que a encíclica chega “na hora exacta”, destacando a importância que o texto pode ter para a avaliação dos programas políticos nas próximas eleições, no nosso país.
“Esta carta-encíclica, se fosse lida e meditada por todos os cristãos, em primeiro lugar, e particularmente também pelos políticos, num tempo que se aproxima de eleições e campanhas eleitorais, de programas que vão ser elaborados, estou convencido que seria muito útil”, defendeu o prelado.
Num encontro inédito, destinado a apresentar o novo documento do Papa, o Arcebispo de Braga disse ser necessário discutir o texto “com a sociedade portuguesa”, em especial para ajudar a formar um voto mais “consciente”, como a CEP já tinha pedido na sua última Assembleia Plenária. De acordo com D. Jorge Ortiga, “a Igreja não se quer intrometer em questões políticas, mas há uma doutrina que se repercute em vários sectores da vida”.
Nesse sentido, defendeu que a “Caritas in veritate” (Caridade na verdade) contém um “conjunto de orientações que poderão enriquecer muito a sociedade portuguesa”.
Alfredo Bruto da Costa, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), foi o convidado da CEP para comentar a nova encíclica, “um documento extremamente denso”. “O Papa evita que se confunda caridade com sentimentalismo, com um conjunto de bons sentimentos muitas vezes inconsequentes”, adianta.
O especialista considerou que a encíclica não é “sobre a crise”, mas “sobre o desenvolvimento humano”, com um “olhar sobre a caridade na verdade”, escrita “em tempo de crise, mas válido para a situação do mundo antes da crise e depois da crise, se durante a mesma não houver mudanças substanciais”.
D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa e presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social, disse à Agência ECCLESIA que com a publicação da sua terceira encíclica Bento XVI oferece-nos um “denso tratado sobre o desenvolvimento de cada pessoa e sobre o desenvolvimento da humanidade na visão cristã”. E acrescenta: “Sentimo-nos como que diante de uma grande e bela tapeçaria tecida pelos fios da caridade e da verdade”.
O Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança, D. Januário Torgal Mendes Ferreira, defende que o empenhamento no social deveria ser a “«bandeira» da Igreja (aberta à direita e à esquerda, na independência e responsabilidade)”.
Num comentário à nova encíclica de Bento XVI sobre a temática do “ensino social” da Igreja, este responsável diz que o texto “oferece-nos a oportunidade da Comunhão e da vontade da mudança do mundo através de critérios indiscutíveis”.
Várias instituições internacionais, até mesmo fora da Igreja Católica, têm manifestado publicamente o seu apreço e admiração pela nova encíclica. “Num momento em que os migrantes são vistos, muitas vezes, como um problema, é de grande importância o convite do Papa a levar em consideração os direitos que, hoje, estão em risco, devido à crise económica e profissional, e de políticas para a segurança que confundem palavras como migrantes e clandestinos”, afirma a Amnistia Internacional.
Para a Cáritas Internacional, o destaque que a nova encíclica de Bento XVI coloca na justiça e no bem comum oferece uma nova visão da economia, da política e da sociedade baseada na responsabilidade partilhada do cuidado pela humanidade e pelo ambiente.
“Centrar apenas no lucro e nos interesses individuais conduziu-nos a consequências viciantes”, afirma por seu lado a CIDSE, plataforma de organizações católicas para o desenvolvimento, sediada em Bruxelas. A CIDSE “sente-se apoiada pelo forte apelo do Papa para um desenvolvimento e progresso económico baseado na ética e na justiça, que coloque o homem no centro”.

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Ser cristão num mundo globalizado e em crise

O desenvolvimento deve ser integral e universal, inclusivo e participativo, subsidiário e solidário, justo e amigo do bem comum, ecológico e sustentável, fundado no amor e na verdade (José Augusto Leitão, svd)

Bento XVI publicou a sua terceira encíclica dedicada ao desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade: "Caritas in veritate".
É uma reflexão profunda que apresenta a Doutrina da Social da Igreja, tendo como base a encíclica de Paulo VI: "Populorum progressio" (1967) e a sua noção de desenvolvimento do "Homem todo e todo o homem".

O contexto actual da globalização e da crise económico-financeira justificam uma reflexão nova que nasce da fé e da razão dum Pastor com coração e solicitude universal.

Como homem de fé, Bento XVI, alerta para os perigos dum humanismo sem Deus, nem referência ao "mais" da transcendência: "Um humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano. (...) O amor de Deus chama-nos a sair daquilo que é limitado e não definitivo, dá-nos coragem de agir continuando a procurar o bem de todos" (nº78). Quem perde o sentido de Deus, facilmente cai no relativismo, no laicismo e na idolatria da técnica e da ciência. Por outro lado, o fundamentalismo ou expressões religiosas que negam o valor da criação alienam-nos da construção do bem comum. Só a caridade na verdade, que nasce da fé no Deus Trindade, nos pode ajudar a superar a visão materialista da realidade e a reconhecer no outro um irmão, membro da mesma família que chama a Deus: Pai-Nosso (cf. nº71, 79).

O Papa, convida-nos ao discernimento guiado pela razão, pois o desenvolvimento integral e universal é uma vocação que exige uma boa fundamentação ética, uma análise interdisciplinar e uma participação responsável de todos. "O actual quadro do desenvolvimento é policêntrico" e devemos libertar-nos das "ideologias que o simplificam" (nº22). Daí a importância da formação e da educação para o desenvolvimento e a sensibilidade para o bem comum, baseados na caridade e na verdade. "A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos" (nº 19).

O desenvolvimento deve ser integral e universal, inclusivo e participativo, subsidiário e solidário, justo e amigo do bem comum, ecológico e sustentável, fundado no amor e na verdade. Por outro lado, Bento XVI identifica algumas opções que não contribuem para o desenvolvimento e que enumero sumariamente: o assistencialismo e a dependência, a exclusão e o monopólio, a exploração e especulação, a ilegalidade e a corrupção, a falta de transparência e o autoritarismo, a violência e a procura desenfreada do lucro, as políticas contra a vida e o meio ambiente, as relações desiguais por motivos culturais, religiosos, de poder ou tecnológico.

Como membro de uma organização missionária (Rede Fé e Justiça Europa-África - AEFJN) que procura mais justiça nas relações entre a Europa e a África, gostei de ler que a doutrina social da Igreja é um elemento essencial da evangelização: "O testemunho da caridade de Cristo através de obras de justiça, paz e desenvolvimento faz parte da evangelização, pois a Jesus Cristo que nos ama, interessa o homem inteiro." (nº 15)

A encíclica aprofunda temas como a globalização, o mercado, o ambiente e a técnica: "É preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta á transcendência, do processo de integração mundial" (nº 42).

O ser humano, presente e futuro, é o centro de todas estas reflexões: "Nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana, que é o sujeito que primariamente deve assumir o dever do desenvolvimento" (nº47). Por isso, o Papa preocupa-se com as desigualdades entre pessoas e povos, as migrações e o desemprego, o turismo e exploração sexual, a falta de respeito pelos direitos humanos, a deslocação de empresas, as formas de participação da sociedade civil, a regulação nacional e internacional do mercado, a interacção das culturas e a paz, a fome e a pobreza, o acesso à água e à educação, o respeito pela vida e pela liberdade, a bioética, a finança ética e o microcrédito, os meios de comunicação social e a democracia económica.

A cooperação e ajuda internacional têm neste documento critérios e análises fundamentais para uma reflexão e avaliação das práticas dos Estados, empresas e organizações não governamentais (cf. Nº 47, 57-60).

Termino, citando um parágrafo com o qual a AEFJN se identifica totalmente: "Sente-se a urgência de encontrar formas inovadoras para actuar o princípio da responsabilidade de proteger e para atribuir às nações mais pobres uma voz nas decisões comuns" (nº 67).

José Augusto Duarte Leitão, svd, Responsável da AEFJN Portugal

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A Lógica da Caridade

Toda esta Encíclica, precisamente porque liga a caridade com a verdade e vice-versa, assenta precisamente num discurso sobre a lógica do amor. Nesse sentido, proponho um comentário baseado nos diversos níveis dessa lógica, que me parecem corresponder, também, à lógica interna do documento (João Duque)

"A verdade abre e une as inteligências no lógos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade. No actual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral" (Caritas in veritate, nº 4)
Gostaria de começar o meu breve comentário à mais recente Carta Encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate, por esta citação, que me parece concentrar em si os principais objectivos de todo o documento. E gostaria de começar por me fixar no termo logos, que permite variadas traduções. Neste caso, prefiro concentrar-me naquela que originou, nas nossas línguas, a expressão lógica. De facto, o logos ou o discurso, também o pensamento sobre algo, implica uma lógica própria. Assim, poderíamos traduzir a expressão "logos do amor" por lógica do amor.

Ora, trata-se de uma expressão algo estranha. De facto, estamos habituados a reduzir a lógica ao âmbito matemático-científico, quando muito ao contexto argumentativo, o que parece não permitir falar de uma lógica do amor, pois o amor escaparia a toda a lógica. Ora, toda esta Encíclica, precisamente porque liga a caridade com a verdade e vice-versa, assenta precisamente num discurso sobre a lógica do amor. Nesse sentido, proponho um comentário baseado nos diversos níveis dessa lógica, que me parecem corresponder, também, à lógica interna do documento.

1. O primeiro nível tem a ver com a fundamental compreensão bíblico-cristã da noção de verdade. Poderíamos chamar-lhe o nível da lógica da acção. De facto, a noção bíblica de verdade é bastante mais abrangente do que a que a reduz ao puro nível do discurso e mesmo da ciência. Porque, no contexto bíblico - que é o contexto cristão - a verdade salva e liberta, possui por isso uma força performativa própria, realizando algo na nossa existência. Em correspondência a essa força activa da verdade, a verdade vivida pelo cristão é uma verdade pragmática, pois a verdade é para ser feita, não apenas para ser dita ou pensada. É claro que também deve ser dita e pensada - pois isso é já fazer algo. Mas, a finalidade última da verdade é uma pragmática que transforme os corações e, por essa via, toda a realidade, sobretudo na sua dimensão sócio-cultural.

Por isso, o cristianismo não é simplesmente uma filosofia, se entendermos por isso um conjunto abstracto de ideias que dizem respeito, mais ou menos, à realidade. É claro que as ideias possuem uma força transformadora própria. Mas podem fechar-se no puro e abstracto jogo ideológico de si mesmas. Nesse sentido, o cristianismo não assenta numa ideia. Também não pode, como tal, ser reduzido a uma espiritualidade desencarnada, que apenas sirva para consolo interior dos indivíduos. Por mais que tenha havido leituras e práticas do cristianismo que o reduziram a essa dimensão espiritual e privada, essas reduções têm significado sempre um desvio da sua verdade. Na história, como na actualidade, esse desvio - a que poderíamos chamar genericamente gnosticismo - tem sido uma das maiores tentações do cristianismo.

Também na actualidade, a tentação gnóstica continua a lançar a sua sombra. Muitas vezes, essa sombra surge no próprio interior do cristianismo, por impulso daqueles grupos que o reduzem a uma actividade interna, orientada para uma dimensão do indivíduo a que se vai chamando «espiritualidade» e que o isola do quotidiano, da dimensão «política», que fica assim relegada para o âmbito do puramente «profano». O cristão atingido por esta tendência, ou se refugia numa vida ideal, alheia ao mundo que o rodeia, ou divide a sua vida esquizofrenicamente entre práticas cristãs (apenas espirituais) e a prática quotidiana, que nada tem a ver com as convicções cristãs.

A própria sociedade, sobretudo por efeitos da modernidade europeia, habituou-se a compartimentar os sujeitos e as instituições, relegando o cristianismo e as suas práticas para o âmbito privado, negando-lhe por isso pertinência pública. Esse é um modo sócio-político de contradizer a lógica cristã, como lógica da acção, concebida como acção integral. E muitos estados ditos «laicos» baseiam nessa perspectiva a sua crítica - e mesmo a sua proibição, muitas vezes - da intervenção pública dos cristãos, pessoal ou institucionalmente considerados.

Mas a lógica - a verdade - do cristianismo é precisamente a lógica do amor, que é de ordem prática e não conhece recantos simplesmente privados, pois envolve a pessoa toda e todas as pessoas. Por isso, na lógica da sua acção estão incluídos todos os problemas e todas as possibilidades da humanidade sua contemporânea. Por isso se torna legítima - e mesmo exigida - a sua intervenção a propósito de todas essas questões, que estão ligadas à acção quotidiana dos nossos contemporâneos, cristãos ou não. É nesse contexto que se justifica a denominada «doutrina social da Igreja». Não como contributo científico nos âmbitos da economia, da política ou da sociologia. Mas como leitura de tudo isso, no contexto da sua lógica própria. E como proposta para o bem-estar integral - com significado salvífico - de todos os humanos.

E essa lógica, por ser a lógica da caridade, tem por finalidade, não apenas fazer uma leitura crítica das realizações humanas, mas também sugerir realizações específicas, que possam ajudar a que a lógica da caridade vá dando frutos, ao longo da história humana. É claro que, dada a especificidade da lógica da caridade, as realizações históricas serão sempre limitadas e falíveis, mesmo que se inspirem no amor que salva. Porque só Deus salva e só Ele terá a última palavra sobre a história humana.



2. Um dos elementos importantes da acção cristã é, por isso mesmo, a consciência ou reconhecimento de que a verdade, que deve ser feita, não é uma verdade já feita pelos humanos, consoante os seus interesses e as suas perspectivas. Trata-se de uma verdade que é sempre dada, como tarefa a realizar. Nesse sentido, um dos elementos básicos da lógica da caridade é o facto de se tratar de uma lógica do dom. Antes de tudo, porque a verdade que fundamenta essa lógica é uma dádiva, em si mesma, e não um produto nosso. Por essa razão, a dádiva que, antes de tudo, se nos dá para ser feita, é a própria verdade. A verdade dada é, portanto, para que reconheçamos a dádiva como verdade - verdade de Deus e verdade dos humanos.

Assim, a verdade é-nos dada, para ser realizada, entre nós, enquanto dádiva, enquanto doação mútua. Ora, a dádiva é da ordem do gratuito. O que se dá, não se dá por interesse em receber algo em troca, muito menos para daí retirar algum lucro. Se assim não for, não existe dádiva ou dom, mas apenas negócio, mercado. A verdade da caridade, como verdade do ser humano, na perspectiva cristã, é que as relações humanas se devem medir por esta capacidade de dar gratuitamente. Mesmo que haja níveis de permuta inter-humana que não sejam gratuitos, o nível da gratuidade deve ser o mais profundo e fundamental.

Esta carta encíclica, por ser uma carta essencialmente de doutrina social da Igreja, afirma claramente que a lógica do dom se deve aplicar, também, ao nível das relações económicas, mesmo ou sobretudo da macro-economia. O capítulo terceiro é todo dedicado à exploração dessas possibilidades. É claro que se trata de uma proposta que parece desconcertante, para muitos mesmo impossível. Mas nisso reside, precisamente, o excesso da lógica do dom gratuito, em relação a todos os sistemas simplesmente «justos», se entendermos a justiça do ponto de vista puramente comutativo, retributivo ou distributivo.

Habitualmente, os sistemas económicos mais recentes - denominados genericamente capitalistas - assentam na lógica do lucro, pretendendo que esse seja o motor do progresso e desenvolvimento dos povos. Mas, sobretudo devido à recente crise económico-financeira global, parece tornar-se cada vez mais evidente que essa lógica não é absoluta e que parece não conduzir aos resultados que promete. Em realidade, apenas serve para realizar o interesse de poucos. Nesse contexto, Bento XVI lança o desafio à aplicação pragmática, nas relações económicas à escala global, da dimensão do gratuito, da dádiva desinteressada.



3. Porque só a lógica da dádiva permite criar verdadeira solidariedade humana, a nível planetário. Porque dela resulta a lógica da comunhão, única capaz de criar verdadeira comunidade humana, entre todos os povos e pessoas. De facto, o dom, dado a todos e para ser dado por todos, origina comunidade, no amor. Outro modo de relação entre os humanos e entre os povos apenas origina dinâmicas de poder, pois parte sempre de arrogantes pretensões da capacidade de quem toma a iniciativa. Muitas vezes, essa lógica do poder afecta mesmo aquilo que, externamente, parece dádiva, sobretudo na relação entre países ricos e países pobres. Ora, cada vez se torna mais evidente o fracasso a que está destinado um sistema que se baseia em relações de poder - poder como capacidade e poder como domínio.

É no sentido de superar esse modo de relação que Bento XVI lança a proposta de uma lógica de comunhão, assente no acolhimento de um dom que nos é dado e na prática desse dom, dando. Daí deve resultar uma nova lógica económica, assente precisamente na economia do dom e não na economia do poder e do lucro. Entenda-se aqui o termo economia como aquele âmbito em que se leva à prática das relações interpessoais e inter-institucionais a lógica da caridade, como pragmática e concretização dessa mesma lógica. É nesse sentido que cristianismo não se limita a dar indicações correctivas aos sistemas económicos. Pode acolher e mesmo propor certas práticas económicas como modos de dar corpo concreto à lógica do amor, ao serviço da qual se encontra. Esta lógica do amor pode ser energia moral para os sistemas económicos, que só estão ao serviço do ser humano se assentarem em convicções éticas.

Isso fará assentar os sistemas económicos e mesmo políticos numa lógica em que a dimensão ética, no bom sentido do termo, seja fundamental: trata-se da lógica da responsabilidade. Bento XVI, quando propõe esta lógica da responsabilidade pessoal e colectiva, local e planetária, pensa explicitamente na superação da pura lógica do mercado e da pura lógica do estado. A primeira, assente simplesmente no dinamismo do lucro, pensado individualmente, perde do horizonte a comunidade humana e cada pessoa concreta, conduzindo a desumanidades, que hoje se tornam cada vez mais evidentes e que acabam por se virar contra os seus próprios autores; a segunda, baseada em jogos de influências e em certo domínio colectivista, acaba por discriminar grande parte da humanidade, originando mais divisão do que comunhão. Toda a actividade económica e política, independentemente de os seus agentes serem ou não cristãos, deverá estar determinada pela lógica da responsabilidade total, caso queira servir verdadeiramente os humanos, sem discriminação de pessoas nem povos.



4. A última parte da Encíclica é dedica à exploração do significado de uma lógica própria, em que desembocam, na prática, todas as outras dimensões da lógica da caridade: trata-se da lógica da relação. Partindo de uma fundamentação teológica dessa lógica (precisamente por referência à relação trinitária, como fonte de todo o ser-em-relação), Bento XVI apresenta o modelo da relação familiar como fundamental para a compreensão do ser humano como ser-em-relação. Porque a relação familiar assenta na relação inter-pessoal, vivendo da relação entre pessoas livres, diferentes, que se amam. Por isso, supera todos os modos de relação assentes no poder ou na dissolução das diferenças pessoais.

Nesse sentido, considera importante, por exemplo, que se analisem criticamente outras tradições religiosas, pois podem colocar em risco este modo de relação, no respeito da liberdade pessoal. Os sistemas de organização social encontram aqui o critério da sua avaliação, pelo menos na perspectiva cristã, que se pretende universal. Ou são respeitadores de cada ser humano, na sua integridade, e respeitadores de todos os seres humanos, na sua igualdade, ou não fazem parte da lógica da caridade, que é a verdade de Deus para os humanos.

E com base nessa posição, simultaneamente dialogante e crítica, que a lógica da caridade se propõe como verdade para todos. Ao propor-se, assume uma tarefa pública, que terá que arrancar o cristianismo da pura reunião de sacristia. Ao mesmo tempo, sendo uma proposta pública, entra no diálogo com outros crentes e mesmo com os não crentes. Porque a finalidade da lógica da caridade é, precisamente, a relação no respeito pelas diferenças. Mas a lógica da caridade só é autêntica se se assumir como lógica da verdade, proposta para todos. É nesse sentido que deverão ser lidas estas densas páginas, que Bento XVI dirige a todos os cristãos, assim como a todos os humanos de boa vontade. Mas, como a verdade é para ser feita, esta é só a primeira parte de uma proposta cristã para o nosso mundo contemporâneo.

João Manuel Duque, teólogo, secretário da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé e Ecumenismo

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Sejamos nós os praticantes!

Gostaria também de ver mais clara a leitura papal sobre a relação baixos salários/ precariedades/ desregulamentação/ exclusão social/ pobreza. Não é que as desigualdades não sejam suficientemente abordadas. Claro que também tem a ver com a justiça distributiva que CV aborda quando afirma que a vida económica precisa "de leis justas e de formas de redistribuição guiadas pela política" (Ulisses Garrido

Saiu a Encíclica Caritas in veritate, a primeira encíclica social deste papa, decorridos 18 anos desde que J.P.II deu a conhecer a Centesimus Annus. Mais do que expectativa, havia necessidade! Mais do que oportunidade, tardava. Mas eis-nos agora com um documento denso, útil e marcante, oportuno, de facto, face ao que o mundo tem vivido.
Proponho-me salientar apenas alguns aspectos mais tocantes do texto, numa dimensão pessoal.

Direi que o mundo, a crise, a vida, as soluções precisam agora, pelo menos para os crentes, de ser orientados por esta moral social.

Um aspecto por demais saliente neste documento ético é o de colocar a pessoa no centro de tudo, da economia, em particular. "A favor de uma sociedade à medida do Homem, da sua dignidade, da sua vocação" (CV,9). É, afinal, a pessoa humana a justificar tudo o que vai sendo proposto - "é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social" e "o primeiro capital e preservar e valorizar... na sua integridade" (CV,25) - num texto incisivo, que se lê sem paragens (na ânsia de o descobrir), para voltar depois a relê-lo no amadurecimento que a pausa permite, no confronto com as nossas práticas recentes, no diálogo com a realidade que nos envolve e que teimamos em querer transformar.

• 1. Da verdade

Logo nos primeiros números (CV,4,5,6...) surge o destaque dado à verdade. "A verdade, fazendo sair os homens das opiniões e sensações subjectivas, permite-lhes ultrapassar determinações culturais e históricas para se encontrarem na avaliação do valor e substância das coisas". Bento XVI afirma mesmo que o desenvolvimento e o bem-estar social precisam da verdade e que sem ela não há, nem consciência social, nem responsabilidade social, restando-nos então ficar à mercê dos interesses privados e de lógicas do poder de efeitos desagregadores.

Importante destaque sem dúvida: a verdade! A falta dela é algo que já nem chega a surpreender-nos, nos negócios, nas políticas, na comunicação, na crise, na vida.

É importante este apelo que Bento nos faz: "defender a verdade, propô-la com humildade e convicção e testemunhá-la na vida" (CV,1). Verdade, confiança e amor pelo que é verdadeiro, indica-nos (CV,5).

• 2. Do bem comum

O caminho vivido nesta fase de globalização dos mercados e das finanças vai no sentido da apropriação e do enriquecimento, no sentido das desigualdades crescentes, do crescimento da pobreza.

Na linha de documentos anteriores da Doutrina Social da Igreja, é proposto ter em grande consideração o bem comum, a partilha de bens e de recursos, para poder realizar o desenvolvimento humano integral. O apelo é o de juntar as consciências e as inteligências em interacção ética (CV,9).

A encíclica relaciona a questão com o mercado - que "em estado puro não existe" (CV,36)- e que, se apenas se centra no valor dos bens, não é gerador de coesão, de que até precisa para funcionar adequadamente (CV,35); o mercado precisa de "formas internas de solidariedade e de confiança recíproca" para cumprir a sua função económica. Mas faz bem em chamar a atenção para que a actividade económica deva produzir riqueza e ter "como finalidade a prossecução do bem comum", mas que é ao político que cabe a redistribuição.

• 3. Da globalização

O Papa reforça a denúncia (CV,22) que tantos tanto temos feito: a nocividade do domínio financeiro sobre o económico, do seu carácter especulativo, o domínio técnico sem acautelar efeitos sociais, os fluxos migratórios descontrolados, a exploração desenfreada dos recursos, o aumento das desigualdades, a corrupção, a ilegalidade e o não respeito por direitos, a actuação das transnacionais, o domínio exclusivo do conhecimento, a limitação do poder político dos estados, as políticas orçamentais restritivas, cortando nas despesas sociais e ameaçando os sistemas de segurança social, a competição entre Estados e regiões em nome duma competitividade "homicida". Encontramos igualmente a condenação das deslocalizações de empresas, motivadas por maior exploração.

O Papa Bento XVI condena que a empresa viva e preste contas quase só ao accionista e afirma necessárias "profundas mudanças no modo de conceber a empresa" (CV,40), bem como, sobre a responsabilidade social da empresa, reconhecendo haver uma maior consciência, não hesita em afirmar que os parâmetros éticos do actual debate não são todos aceitáveis pela DSI.

Condena igualmente as opções económicas que façam aumentar de forma excessiva e moralmente inaceitável, as diferenças de riqueza (CV,32), mas nesta matéria, a meu ver, o excessiva e moralmente inaceitável está a mais, já que considero inaceitável alargar seja o que for a diferença de riqueza: só há mesmo um caminho justo, diminuir o fosso!

• 4. Dos trabalhadores e dos sindicatos

A mobilidade e a desregulamentação laboral são apreciadas como tendo aspectos positivos; esses, no entanto, não existem quando deles resulta "endémica a incerteza sobre as condições de trabalho" (CV,25), originando "instabilidade psicológica, com dificuldades de construir percursos coerentes na própria vida", incluindo a constituição de família, fazendo com que apareçam "situações de degradação humana...e desperdício de força social".

Chegam a ser referidas as "grandes empresas transnacionais e também grupos de produção local" entre os que não respeitam os direitos humanos dos trabalhadores.

A questão, a meu ver, não se coloca nesta constatação, mas na afirmação de aspectos positivos, que o Papa destaca em primeiro lugar, quando a realidade laboral, tanto quanto sei, por todo o mundo, é de tal modo avassaladora que o lado positivo será super residual e excepcional.

Sobre o desemprego, a Encíclica aborda o problema numa perspectiva preocupada, particularmente para os desempregados de longa duração, evidenciando a ligação entre desemprego e pobreza.

É importante o reconhecimento papal de que há limitação das liberdades sindicais e da capacidade negociadora dos sindicatos e de que os mesmos têm particular dificuldade na representação cabal dos trabalhadores, mas não deixa de, de forma clara e peremptória, referir a necessária "resposta pronta e clarividente à urgência de instaurar novas sinergias a nível internacional, sem descurar o nível local". Não é possível saber o que Sua Santidade pensa sobre a recente Confederação Sindical Internacional, uma resposta sindical nesse mesmo sentido, a que a CGTP (ainda) não aderiu. Titubeante mas esperançosa, a CSI afirma perseguir um novo internacionalismo e alargou o seu campo de unidade para além dos que lhe deram origem - mas restam problemas a resolver e há muita acção para cumprir.

Os sindicatos são desafiados a olhar também para os não associados, a inovarem as suas abordagens face aos novos problemas e a considerarem a relação conflito trabalhador/consumidor.

Os sindicatos, reafirma Bento XVI, precisam distinguir os papéis e funções entre sindicato e política, individualizando claramente o seu campo de acção no seio da sociedade civil. Esta é todavia matéria importante para aprofundar, já que está totalmente fora da realidade. Todos os sindicatos são atravessados pela política, muitos ligados duma forma ou doutra a partidos, sendo certo que muito do progresso em direitos e condições de vida e de trabalho foi conseguido com esses mesmos sindicatos em negociação; o diálogo, a possível convergência de posições, alguma cooperação livre em certas temáticas, um relacionamento institucional, são aspectos positivos a desenvolver com transparência; a questão dos papéis está certa, a outra questão deverá ser, a meu ver, a da autonomia sindical. Isto é, quem decido e como decide. Tem a ver com o funcionamento democrático e com decisões tomadas realmente nos órgãos competentes e não tomadas nas organizações partidárias e depois impostas, por dentro, aos sindicatos. É esta a questão de fundo, quanto a mim.

Gostaria também de ver mais clara a leitura papal sobre a relação baixos salários/ precariedades/ desregulamentação/ exclusão social/ pobreza. Não é que as desigualdades não sejam suficientemente abordadas. Claro que também tem a ver com a justiça distributiva que CV aborda quando afirma que a vida económica precisa "de leis justas e de formas de redistribuição guiadas pela política" (CV,37).

• 5. Por uma nova síntese humanista

O mundo tem necessidade duma renovação cultural profunda e dum regresso aos valores essenciais. A crise é "ocasião de discernimento e elaboração de nova planificação", tempo a exigir confiança e esperança, mas também realismo. A impor que se assumam novas responsabilidades.

O mundo velho já não serve. A crise não poderá solucionar-se com o regresso ao passado, ainda que mais moderado! É preciso não nos socorrermos de ideologias simplificadoras da realidade e examinar com objectividade.

Bento XVI defende uma renovada avaliação do papel e do poder dos estados, cada um com as suas características, com articulação de autoridade a todos os níveis (CV,41), para serem capazes de enfrentar os problemas e propõe-nos reforçar as novas formas de participação na política nacional e internacional (CV,24).

Defende a iniciativa económica e "sectores ou segmentos éticos" (CV,45) na economia e finanças, bem como ética em toda a economia e finanças.

Apoia e defende o trabalho digno (ou decente), trabalho escolhido livremente, que permita aos trabalhadores serem respeitados sem discriminações, que satisfaça as necessidades das famílias e permita aos filhos estudar; que permita aos trabalhadores organizarem-se e terem voz; que permita reencontrar-se, a nível pessoal, familiar e espiritual; que garanta uma reforma digna.

Afirma os direitos e o estado de direito. Propõe a transparência em todos os organismos internacionais e em todas as ONG's. Avança com a proposta duma verdadeira autoridade política mundial (CV,67), regulada pelo direito, sob os princípios da subsidiariedade e da solidariedade, com poder efectivo para garantir a segurança, a justiça e os direitos, orientada para o bem comum e realizando o autêntico desenvolvimento humano integral.

Tem consciência de que a "progressiva corrosão do ‘capital social', além dum impacto negativo no plano económico... põe em risco a democracia". Na verdade, temos de cerrar fileiras: não podem ser descuidados os princípios "da ética social"!

Palavras avisadas. Mas há muitas orelhas moucas...

Do Papa veio um estímulo; para nós, deve ser um compromisso. Sejamos nós os praticantes!

Ulisses Garrido, Sindicalista, membro do grupo Economia e Sociedade da CNJP, vice-Presidente do Fórum pela Paz e pelos Direitos Humanos

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Mais além - Razão e medida do desenvolvimento que a técnica não pode dar

Bento XVI não só parece desejar dialogar com uma religião sem religião, uma teologia sem teologia, numa relação aberta e interdisciplinar, como consegue com que os termos da sua encíclica sejam reconhecidos por quem hoje não absolutiza certamente uma particular transcendência mas vive o cuidado pelo outro como transformação pessoal, numa dedicação ao MAIS que excede o momento presente e a história humana não esgota (Henrique Pinto)

"Em cada conhecimento e em cada acto de amor, a alma do homem experimenta um "extra" que se assemelha muito a um dom recebido, a uma altura para a qual nos sentimos atraídos" (Caritas in Veritate, nº 77)
"Enquanto os pobres do um do mundo batem às portas da opulência, o mundo rico corre o risco de deixar de ouvir tais apelos à sua porta por causa de uma consciência já incapaz de reconhecer o humano" (Caritas in Veritate, nº 75)


O que me ocorre defender de imediato, concluída a leitura da mais recente encíclica de Bento XVI, Caritas in Veritate, é que apesar de se dirigir sobretudo à hierarquia e fiéis da Igreja Católica, ela devia ser seriamente considerada por toda a gente. E não penso apenas nos que se têm por pessoas de boa vontade, mas nos que sabem reconhecer a sua contingência, o enigma do existir e o "mais" que nos excede, também em véspera de eleições.

Pela mão do Papa, a Igreja reconhece não ter soluções técnicas para oferecer, como sublinha não ser sua intenção "imiscuir-se na política dos Estados" (nº 9). Mas num serviço à "caridade na verdade", testemunhada por Jesus de Nazaré, e em linha de continuidade com o pensamento socioeconómico cultural e político dos seus últimos Sumos Pontífices, a Igreja oferece à globalização e ao momento de actual crise económica e financeira, um elaborado, amplo e importante tratado sobre o desenvolvimento humano integral. Da distribuição da riqueza ao respeito pela vida, do ambiente à urgência de uma reforma da ONU, este trabalho de Bento XVI denuncia com grande actualidade, clareza e rigor a ausência de verdade no ser humano, chamado ao desenvolvimento ou à superação de si mesmo pela prática da "caritas" nascida da verdade inerente ao incondicional reconhecimento do outro.

No entanto, retenho que a Carta Encíclica, mesmo do ponto de vista de quem se tem por cristão católico, não deixa de ter as suas dificuldades. No seu centro está uma determinada ideia de "verdade cristã" e esta, num tempo dito pós-moderno, não será certamente poupada aos mais variados questionamentos.

Na verdade, ao reconhecer que o mercado não existe em estado puro (nº 36), Bento XVI, parece esquecer que também a verdade dita "dom permanente de Deus" (nº 78), ou "projecto divino" (nº 57), carece de pureza, precisamente porque refém de infinitos e intermináveis processos de interpretação - ainda que para travar esta condição do conhecimento humano, a Igreja invoque uma assistência privilegiada do "Espírito de Deus" e, no seu seguimento, a infalibilidade do seu governo em questões de fé e moral. Por isso, talvez não seja mesmo a não aceitação da "caridade na verdade", ou a ausência de verdade, de confiança e de amor, como diz Bento XVI, a razão por que "não há consciência e responsabilidade social" "e a actividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade" (nº 5). Se assim fosse, talvez a própria história do Cristianismo não estivesse tão manchada de vergonhosa violência e morte.

Preocupa o actual Papa o relativismo e o niilismo. Por isso, ele não cessa de defender um "fundamento", a "metafísica" e de sustentar que nem todas as culturas e religiões são iguais. Mas sublinho, uma vez mais, que talvez não seja mesmo a ausência de um princípio e fim último da história humana a razão da "trágica reclusão do homem em si próprio" (nº 53).

Ainda que não partilhem da "caridade na verdade" que serve de alicerce ao que Bento XVI tem para dizer sobre o desenvolvimento humano integral, diversos pensadores, ao contribuírem para uma rigorosa e meticulosa ontologia do presente, "libertaram" do mais profundo, solitário e abandonado cárcere uma realidade a que se tem dado o nome de "tout'Autre" (em francês) ou de radical Alteridade, e ao fazê-lo, o seu incondicional respeito tem-se vindo a tornar "forma" inevitável do agir humano. Apesar de Bento XVI não se render a uma história sem um "Fundamento Último", ainda que totalmente aberta a um "pensamento do exterior", defendida mesmo em ambientes académicos católicos, não deixa de ser curioso verificar que o Sumo Pontífice começa por falar num rosto, Jesus Cristo, passando pelo Deus Trino, para nas suas derradeiras páginas falar de um "extra" que o "conhecido esconde", de um "dom" de uma "altura", de um "mais além" para a qual o desejo de "ser mais" tende, mas, nestas expressões, já sem rosto (nº 77).
Neste esvaziamento, que vai da afirmação de um nome na direcção de algo situado para lá dele, Bento XVI não só parece desejar dialogar com uma religião sem religião, uma teologia sem teologia, numa relação aberta e interdisciplinar, como consegue com que os termos da sua encíclica sejam reconhecidos por quem hoje não absolutiza certamente uma particular transcendência mas vive o cuidado pelo outro como transformação pessoal, numa dedicação ao MAIS que excede o momento presente e a história humana não esgota.

No centro da Caritas in Veritate e no centro da vida de quem se vive numa total dedicação incondicional ao tout'Autre, está a finitude humana, a consciência da interdependência de tudo quanto existe e por conseguinte, a certeza de que o Bem, quando se deseja e constrói, não pode excluir nada nem ninguém e que, como tal, só pode ser Comum.

Henrique Pinto, Associação Cais

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Uma encíclica notável

A palavra-chave desta Encíclica é a de desenvolvimento humano. Um desenvolvimento integral, autêntico, libertador, pluridimensional. Um desenvolvimento associado à ética e à responsabilidade pessoal e social. À justiça distributiva e não apenas á justiça contratual e comutativa (António Bagão Félix)


No meio de muita poeira mediática e de uma preocupante lassidão ética, foi divulgada a 296ª Encíclica Papal e a terceira de Bento XVI, "Caritas in Veritate". É um extenso e profundo documento que constituirá um marco assinalável de enriquecimento da Doutrina Social da Igreja enquanto património universal não apenas destinado a orientar a acção na vida dos fiéis, como a dirigir-se a todos os homens e mulheres de boa vontade, de todas as nações e credos.
Pena que aqui e nos dias que se seguiram à sua divulgação, tenha passado ao lado das primeiras notícias, quase sempre num fugidio rodapé. Tivessem sido umas palavras (descontextualizadas) do Papa sobre, por exemplo, o uso do preservativo e durante dias, teríamos assistido a uma avalancha de opiniões, comentários e diktats.

Condensar em poucas palavras o significado e riqueza desta Encíclica é tarefa impossível tal a densidade de cada palavra e pensamento. Por isso, a minha primeira sugestão é a da sua leitura reflexiva não apenas no interior da Igreja (onde nem sempre é lida...), como no seio da sociedade civil, política e económica.

É uma Encíclica fascinante onde para cada frase se pode e deve reflectir com profundidade. Uma Encíclica de um Papa intelectual e teologicamente brilhante.

Bento XVI parte de todo o ensinamento social desde a Rerum Novarum até às encíclicas de João Paulo II e sobretudo à Populorum Progressio (Paulo VI) de há 40 anos para, com sabedoria, e à luz dos dias de hoje e da natureza plurívoca da crise por que passamos, oferecer princípios de estudo e de comprometimento, tendo a pessoa humana como princípio, sujeito e centro.


A palavra-chave desta Encíclica é a de desenvolvimento humano. Um desenvolvimento integral, autêntico, libertador, pluridimensional. Um desenvolvimento associado à ética e à responsabilidade pessoal e social. À justiça distributiva e não apenas á justiça contratual e comutativa. À capacidade de conciliar Mercado, Sociedade e Estado. À afirmação do princípio da subsidiariedade para "governar a globalização". À necessidade de ultrapassar a ideologia tecnocrática dominante. Ao "ser mais e melhor" e não apenas "ao incremento do ter". À importância das energias morais para neutralizar os excessos alienantes de produtivis-mo e de utilitarismo. À sustentabilidade social, demográfica e geracional que erradique a primazia da lógica estrita do curto-prazo.

Mais do que palavras que possa escrever, permito-me seleccionar (o que não é nada fácil), "meia dúzia" de frases do documento que desejo possam aumentar o interesse do leitor pela sua leitura integral:

O mercado está sujeito aos princípios da chamada justiça comutativa, que regula precisamente as relações do dar e receber entre sujeitos iguais. Mas a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva (...).

A gestão da empresa não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários factores de produção, a comunidade de referência.

É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros seja especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo sem cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo, do seu serviço concreto à economia real

Não é lícito deslocalizar somente para gozar de especiais condições de favor ou, pior ainda, para exploração, sem prestar uma verdadeira contribuição à sociedade local para o nascimento de um robusto sistema produtivo e social, factor imprescindível para um desenvolvimento estável.

Qual é o significado da palavra «decência» aplicada ao trabalho? Significa um trabalho que, em cada sociedade, seja a expressão da dignidade essencial de todo o homem e mulher: um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade; um trabalho que, deste modo, permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar; um trabalho que permita aos trabalhadores organizarem-se livremente fazerem ouvir a sua voz; um trabalho que deixe espaço suficiente para reencontrar as próprias raízes a nível pessoal familiar e espiritual; um trabalho que assegure aos trabalhadores aposentados uma condição decorosa.

Quando prevalece a absolutização da técnica, verifica-se uma confusão entre fins e meios: como único critério de acção, o empresário considerará o máximo lucro da produção; o político, a consolidação do poder; o cientista, o resultado das suas descobertas

Razão e fé ajudam-se mutuamente; e só conjuntamente salvarão o homem: fascinada pela pura tecnologia, a razão sem a fé está destinada a perder-se na ilusão da própria omnipotência, enquanto a fé sem a razão corre o risco do alheamento da vida concreta das pessoas.

Além do crescimento material, o desenvolvimento deve incluir o espiritual, porque a pessoa humana é «um ser uno, composto de alma e corpo».

Sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja.


António Bagão Félix

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Rumo a um processo de integração mundial

Por uma «orientação cultural personalista e comunitária, aberta à transcendência, do processo de integração mundial» (Joana Rigato)

Quarenta e dois anos depois da Populorum Progressio, Bento XVI publica a encíclica Caritas in Veritate, mediante a qual pretende actualizar a mensagem de Paulo VI à luz da nova era da globalização e dos últimos dois anos de crise económica e financeira internacional. Assistimos hoje, portanto, a mais um passo na construção sempre nova da doutrina social da Igreja, na procura de respostas para os desafios históricos da sociedade à luz da Verdade do evangelho e da lei do Amor. Amor (caridade) e Verdade são, com efeito, o cerne da própria doutrinal social, começa por dizer Bento XVI: "tal doutrina é «caritas in veritate in re sociali», ou seja, proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade; é serviço da caridade, mas na verdade". Essa verdade, que evitará os "estrangulamentos do emotivismo" e a arbitrariedade de um amor sem um norte que o oriente, é a "luz da razão e da fé". Luz esta que ilumina a gratuidade da caridade, portanto, para que esta realize (e simultaneamente ultrapasse) a Justiça na prossecução do Bem Comum, constituindo o caminho que a humanidade tem de retomar numa época que se apresenta plena de desafios, riscos e exigências.
É com base nesta premissa que o Papa analisa os tempos actuais e aborda, numa encíclica densa e rica, temas relativos à economia globalizada, ao ambiente, à pobreza e à fome, ao desemprego e aos direitos dos trabalhadores, ao fenómeno das migrações e à dignidade dos migrantes, à especulação financeira, à política nacional e transnacional, à ética empresarial, à técnica, ou à comunicação social.

A centralidade da pessoa humana e a sua inalienável dignidade, tanto à luz da fé cristã, como do quadro antropológico e ético que consagrou os direitos humanos como universais e "indisponíveis", é o denominador comum que serve de base à leitura de todos estes fenómenos contemporâneos.

"A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos", explica Bento XVI. Com efeito, o erro de dissociar a economia de um quadro ético assente na caridade ("a lógica do dom como expressão da fraternidade") tem conduzido a família humana a desequilíbrios que exigem uma mudança de paradigma.



O desenvolvimento das últimas décadas tem sido heterogéneo e contraditório, crescendo a riqueza à escala global ao mesmo tempo que aumentam as desigualdades entre ricos e pobres, e surgem inclusivamente novas bolsas de pobreza no seio dos países tradicionalmente mais desenvolvidos. Bento XVI relembra, pois, que "o aumento sistemático das desigualdades (...) tende não só a minar a coesão social - e, por este caminho, põe em risco a democracia -, mas tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do «capital social», isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil".

Bento XVI denuncia o erro da visão segundo a qual "a economia de mercado tem estruturalmente necessidade duma certa quota de pobreza e subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo". Pelo contrário, diz o Papa, "o mercado tem interesse em promover emancipação" e em garantir que todos os intervenientes possam ser considerados como um recurso (e não um "fardo"), participando no jogo dos intercâmbios comerciais e financeiros à escala mundial enquanto sujeitos activos, sob pena de o desenvolvimento global embater dramaticamente no obstáculo da pobreza. Para tal, o mercado, que não é negativo por natureza, precisa de ser regulado por um poder político com autoridade real, para que não seja o "lugar da prepotência do forte sobre o débil". A justiça, nas suas múltiplas formas, é o meio para garantir esta emancipação generalizada na prossecução do Bem Comum.

A tendência, portanto, a considerar que as sombras e falhas do quadro de desenvolvimento mundial são inevitáveis, tem de ser considerada incorrecta, já que as situações de subdesenvolvimento "não são fruto do acaso nem de uma necessidade histórica", mas de opções políticas e económicas, pelo que "dependem da responsabilidade humana".

A encíclica é marcada pelo repetido apelo a uma preocupação prioritária com o capital humano nas suas diferentes dimensões. Sublinha, em particular, a necessidade de defesa dos direitos dos trabalhadores num contexto de deslocalização da produção e de perda de direitos sociais, a favor do lucro como fim em si mesmo, graças ao crescente poder das grandes empresas transnacionais que influenciam até os governos nas suas políticas sociais. Bento XVI defende como prioritário o acesso ao trabalho para todos e a tutela dos direitos laborais, já que "o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem".

Também no âmbito da cooperação internacional o capital humano tem de voltar a estar no centro das políticas e do modo de proceder das instituições. Neste sentido, Bento XVI alerta para o risco de "assistencialismo paternalista" em que governos e organismos incorrem quando não dão a devida centralidade aos beneficiários e esquecem o princípio da subsidiariedade. Para além disto, o Papa exorta os países mais desenvolvidos a respeitarem os compromissos assumidos quanto às quotas do seu produto interno bruto a destinar às ajudas ao desenvolvimento (0,7% do PIB). Por outro lado, apela a que os organismos internacionais que se ocupam da cooperação repensem as suas prioridades, reconhecendo a incoerência que representam as máquinas burocráticas excessivamente pesadas e ineficazes que suportam: "às vezes sucede que o destinatário das ajudas seja utilizado em função de quem o ajuda e que os pobres sirvam para manter de pé dispendiosas organizações burocráticas que reservam para sua própria conservação percentagens demasiado elevadas dos recursos que, ao invés, deveriam ser aplicados no desenvolvimento".



Em suma, todas as questões mais prementes da economia e da política (como a gestão dos desafios da imigração, o uso dos recursos energéticos e a relação do homem com o meio ambiente, o papel dos Estados na regulação da economia, as actividades de natureza financeira ou a técnica como instrumento de poder) devem ser reanalisadas à luz de um quadro ético de direitos e deveres (sendo fundamental compreender que "a partilha dos deveres recíprocos mobiliza muito mais do que a mera reivindicação de direitos"), ao mesmo tempo que se torna imperioso que o desenvolvimento seja entendido não só na sua vertente material. Como recorda Bento XVI, Deus tem de encontrar "lugar na esfera pública", não só na medida em que a liberdade religiosa de professar a própria fé num mundo cada vez mais secularizado é um direito a reconquistar, como também porque a ausência de sentido da transcendência no coração do homem e na sociedade resulta numa falta de consciência ética cujas consequências estão à vista de todos. "Enquanto os pobres do mundo batem às portas da opulência, o mundo rico corre o risco de deixar de ouvir tais apelos à sua porta por causa de uma consciência já incapaz de reconhecer o humano".

A caridade (fruto directo de um Deus que é Amor) iluminada pela verdade (da razão e da fé), é portanto o requisito fundamental para mudar a arquitectura política, económica e financeira à escala nacional e transnacional, a par das próprias mentalidades e estilos de vida de cada um, reconhecendo o mundo globalizado como família humana, já que "sem Deus, o homem não sabe para onde ir e não consegue sequer compreender quem seja".

Joana Rigato, Vice-Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz




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Um guia social em 79 pontos

Bento XVI apresentou no dia 7 de Julho a sua terceira encíclica, "Caritas in Veritate" (A caridade na verdade), um texto de 79 pontos, em que se mostra a um mundo ainda abalado pela crise financeira um conjunto de orientações para o mundo económico e exigências de solidariedade

Lembrar os pobres e os mais desprotegidos no tempo da globalização é o fio condutor do documento, que procura apresentar caminhos para o "verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e de toda a humanidade".
O Papa repete a palavra "caridade", que dava o mote à sua primeira encíclica abordando desta feita matérias ligadas ao mundo do trabalho, da economia e do desenvolvimento. Na abertura da encílica refere-se que há um contexto social e cultural que "relativiza a verdade" e provoca um "esvaziamento" da caridade, o que pode fazer com que "a actividade social acabe à mercê de interesses privados e lógicas de poder".

Justiça e bem comum são apresentados como critérios orientadores para o agir, também dos cristãos, embora Bento XVI reafirme que a Igreja não tem soluções técnicas para apresentar, mas "uma missão de verdade para cumprir". "Quando o empenho pelo bem comum é animado pela caridade, tem uma valência superior à do empenho simplesmente secular e político", pode ler-se.

Alertas e preocupações

O I Capítulo é dedicado à encílica "Populorum Progressio" (1967), de Paulo VI, retomando "os seus ensinamentos sobre o desenvolvimento humano integral" e pedindo um "verdadeiro humanismo", aberto ao "Absoluto".

"Deus é o garante do verdadeiro desenvolvimento do homem", escreve.

Neste contexto, é dito que a Igreja tem um papel público a cumprir, "sem olhar a privilégios nem posições de poder", e propõe-se uma "ligação entre ética de vida e ética social", comprometendo cada pessoa "a fim de fazer avançar os actuais processos económicos e sociais para metas plenamente humanas".

A falta de fraternidade entre homens e povos é uma das preocupações apresentadas: "A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos".

O capítulo II aborda a questão do desenvolvimento no nosso tempo, começando com um alerta de Bento XVI: "O lucro é útil se, como meio, for orientado para um fim que lhe indique o sentido e o modo como o produzir e utilizar".

"As forças técnicas em campo, as inter-relações a nível mundial, os efeitos deletérios sobre a economia real duma actividade financeira mal utilizada e maioritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios, com frequência provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração desregrada dos recursos da terra, induzem-nos hoje a reflectir sobre as medidas necessárias para dar solução a problemas que são não apenas novos relativamente aos enfrentados pelo Papa Paulo VI, mas também e sobretudo com impacto decisivo no bem presente e futuro da humanidade", indica.

No contexto da crise, surgiu uma renovada avaliação do "papel e poder" dos Estados, com o Papa a pedir "novas formas de participação" na vida política nacional e internacional.

A luta contra a fome merece uma chamada de atenção: "É necessária a maturação duma consciência solidária que considere a alimentação e o acesso à água como direitos universais de todos os seres humanos, sem distinções nem discriminações", observa.

Aborto, eutanásia e violações à liberdade religiosa são outras preocupações apresentadas, a que se juntam o "terrorismo de índole fundamentalista, que gera sofrimento, devastação e morte, bloqueia o diálogo entre as nações e desvia grandes recursos do seu uso pacífico e civil".

Crise

O Papa admite que "as grandes novidades, que o quadro actual do desenvolvimento dos povos apresenta, exigem em muitos casos novas soluções", considerando como prioritário "o objectivo do acesso ao trabalho".

Fraternidade, desenvolvimento económico e sociedade civil são o tema do Capítulo III, em que se alerta contra uma visão "meramente produtiva e utilarista da existência".

Regulação, legislação e redistribuição da riqueza são temas abordados num conjunto de reflexões em que se procura afastar a ideia de um mercado negativo por natureza e se fala da importância das "leis justas" nos Estados para a "civilização da economia".

Esta secção conclui-se com uma nova avaliação do fenómeno da globalização, visto como mais do que um mero processo socio-económico: "Não devemos ser vítimas dela, mas protagonistas, actuando com razoabilidade, guiados pela caridade e a verdade".

No Capítulo IV aparecem as questões direitos e deveres, da ecologia e da ética. Bento XVI fala de uma reivindicação do "supérfluo" qu contrasta com a falta de água e alimento em certas regiões subdesenvolvidas. O Papa afirma também que é "errado" considerar o aumento da população como "primeira causa de subdesenvolvimento", lembrando que a queda dos nascimentos "põe em crise os sistemas de assistência social".

"Nesta perspectiva, os Estados são chamados a instaurar políticas que promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da sociedade", acrescenta a encíclica.

A colaboração da família humana está no centro do Capíutulo V, onde se lê que os cristãos apenas podem contribuir para o desenvolvimento "apenas se Deus encontrar lugar também na esfera pública". O Papa faz referência ao princípio da subsidariedade, como "antídoto" contra qualquer forma de "assistencialismo paternalista".

Um maior acesso à educação e um compromisso internacional contra fenómenos como o turismo sexual são indicações de Bento XVI para promover um desenvolvimento integral, em que se incluem ainda as novas dinâmicas das migrações, impossíveis de resolver "por um país, de forma isolada".

A reforma "urgente" da ONU e da actual arquitectura económica e financeira mundial levam o Papa a defender uma nova e verdadeira "autoridade política mundial".

O sexto e último capítulo é dedicado ao tema do desenvolvimento dos povos e da técnica, com aviso em relação à ideologias tecnocráticas. Neste contexto, é referido que "um campo primário e crucial da luta cultural entre o absolutismo da técnica e a responsabilidade moral do homem é o da bioética".

Na conclusão, Bento XVI dirige-se aos cristãos e indica que "o desenvolvimento implica atenção à vida espiritual, uma séria consideração das experiências de confiança em Deus, de fraternidade espiritual em Cristo, de entrega à providência e à misericórdia divina, de amor e de perdão, de renúncia a si mesmos, de acolhimento do próximo, de justiça e de paz".

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Critérios morais para projectos políticos e económicos

Na audiência geral de quarta-feira, 8 de Julho, que teve lugar na Sala Paulo vi, Bento XVI ao falar da nova encíclica reafirmou que só "homens rectos" e "atentos ao bem comum" podem orientar a política e a economia rumo à realização de um autêntico desenvolvimento humano integral.


Queridos irmãos e irmãs!
A minha nova Encíclica Caritas in veritate, que ontem foi oficialmente apresentada, inspira-se na sua visão fundamental num trecho da carta de São Paulo aos Efésios, no qual o Apóstolo fala do agir segundo a verdade na caridade: "praticando a verdade ouvimo-lo agora cresceremos em todas as coisas pela caridade n'Aquele que é a Cabeça, o Cristo" (4, 15). A caridade na verdade é por conseguinte a principal força propulsora para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. Por isso, em volta do princípio "caritas in veritate", move-se toda a doutrina social da Igreja. Só com a caridade, iluminada pela razão e pela fé, é possível alcançar objectivos de desenvolvimento dotados de valor humano e humanizante. A caridade na verdade "é um princípio à volta do qual gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores" (n. 6). A Encíclica recorda imediatamente na introdução dois critérios fundamentais: a justiça e o bem comum. A justiça é parte integrante daquele amor "com os factos e na verdade" (1 Jo 3, 18), à qual exorta o apóstolo João (cf. n. 6). E "amar alguém é desejar o seu bem e comprometer-se eficazmente por ele. Ao lado do bem individual, há um bem relacionado com o viver social das pessoas... Ama-se tanto mais eficazmente o próximo quanto mais nos comprometemos" pelo bem comum. Portanto, são dois os critérios operativos, a justiça e o bem comum; graças a este último, a caridade adquire uma dimensão social. Cada cristão diz a Encíclica é chamado a esta caridade, e acrescenta: "É este o caminho institucional... da caridade" (cf. n. 7).
Como outros documentos do Magistério, também esta Encíclica retoma, continua e aprofunda a análise e a reflexão da Igreja sobre temáticas sociais de interesse vital para a humanidade do nosso século. De modo especial, retoma quanto escreveu Paulo VI, há mais de quarenta anos, na Populorum progressio, pedra milenar do ensinamento social da Igreja, na qual o grande Pontífice traça algumas linhas decisivas, e sempre actuais, para o desenvolvimento integral do homem e do mundo moderno. A situação mundial, como demonstra amplamente a crónica dos últimos meses, continua a apresentar grandes problemas e o "escândalo" de desigualdades clamorosas, que permanecem apesar dos compromissos assumidos no passado. Por um lado, registam-se sinais de graves desequilíbrios sociais e económicos; por outro, invocam-se de várias partes reformas que não podem continuar a ser adiadas para colmar o abismo no progresso dos povos. O fenómeno da globalização pode, para esta finalidade, constituir uma real oportunidade, mas para isso é importante que se lance mão a uma profunda renovação moral e cultural e a um discernimento responsável sobre as opções a serem feitas para o bem comum. Um futuro melhor para todos é possível, se for fundado na redescoberta dos valores éticos fundamentais. Isto é, é necessária uma nova projectualidade económica que redesenhe o desenvolvimento de modo global, baseando-se no fundamento ético da responsabilidade diante de Deus e do ser humano como criatura de Deus.
Certamente a Encíclica não pretende oferecer soluções técnicas às vastas problemáticas sociais do mundo de hoje não é esta a competência do Magistério da Igreja (cf. n. 9). Mas ela recorda os grandes princípios que se revelam indispensáveis para construir o desenvolvimento humano dos próximos anos. Entre eles, em primeiro lugar, a atenção à vida do homem, considerada como centro de todo o verdadeiro progresso; o respeito do direito à liberdade religiosa, sempre estreitamente relacionado com o progresso do homem; a rejeição de uma visão prometeica do ser humano, que o considere artífice absoluto do próprio destino. Uma confiança ilimitada nas potencialidades da tecnologia no final revelar-se-ia ilusória. São necessários homens rectos quer na política quer na economia, que sejam sinceramente atentos ao bem comum. Em particular, considerando as emergências mundiais, é urgente chamar a atenção da opinião pública para o drama da fome e da segurança alimentar, que investe uma parte considerável da humanidade. Um drama destas dimensões interpela a nossa consciência: é necessário enfrentá-lo com determinação, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres. Tenho a certeza de que este caminho de solidariedade ao desenvolvimento dos países mais pobres ajudará sem dúvida a elaborar um projecto de solução da crise global em curso. Sem dúvida deve ser revalorizado atentamente o papel e o poder político dos Estados, numa época em que existem de facto limites à sua soberania devido ao novo contexto económico-comercial e financeiro internacional. E por outro lado, não deve faltar a participação responsável dos cidadãos na política nacional e internacional, graças também a um renovado empenho das associações dos trabalhadores chamadas a instaurar novas sinergias a nível local e internacional. Desempenham um papel de primeiro plano, também neste campo, os meios de comunicação social para o potenciamento do diálogo entre culturas e tradições diversas.
Querendo portanto programar um desenvolvimento não viciado pelas disfunções e deturpações hoje amplamente presentes, impõe-se da parte de todos uma séria reflexão sobre o próprio sentido da economia e sobre as suas finalidades. É o estado de saúde ecológica do planeta que o reclama; é a crise cultural e moral do homem, que sobressai com evidência em todas as partes do globo, que o exige. A economia precisa da ética para o seu correcto funcionamento; precisa de recuperar o importante contributo do princípio de gratuidade e da "lógica da doação" na economia de mercado, onde a regra não pode ser unicamente o lucro. Mas isto só é possível graças ao compromisso de todos, economistas e políticos, produtores e consumidores e pressupõe uma formação das consciências que dê força aos critérios morais na elaboração dos projectos políticos e económicos. Justamente, de várias partes se faz apelo ao facto de que os direitos pressupõem deveres correspondentes, sem os quais os direitos correm o risco de se transformarem em arbítrio. É necessário, repete-se cada vez mais, um estilo de vida diferente da parte de toda a humanidade, no qual os deveres de cada um para com o ambiente se unam com os deveres para com a pessoa considerada em si mesma e em relação com os outros. A humanidade é uma só família e o diálogo fecundo entre fé e razão não pode deixar de a enriquecer, tornando mais eficaz a obra da caridade no social, e constituindo o quadro apropriado para incentivar a colaboração entre crentes e não-crentes, na compartilhada perspectiva de trabalhar pela justiça e pela paz no mundo. Como critérios-guia para esta interacção fraterna, na Encíclica indico os princípios de subsidiariedade e de solidariedade, em estreita relação entre eles. Indiquei por fim, face às problemáticas tão vastas e profundas do mundo de hoje, a necessidade de uma Autoridade política mundial regulamentada pelo direito, que seja conforme com os mencionados princípios de subsidiariedade e solidariedade e firmemente orientada para a realização do bem comum, no respeito das grandes tradições morais e religiosas da humanidade.
O Evangelho recorda-nos que nem só de pão vive o homem: não se pode satisfazer a sede profunda do seu coração apenas com bens materiais. O horizonte do homem é indubitavelmente mais alto e mais vasto; por isso, qualquer programa de desenvolvimento deve ter presente, paralelamente ao crescimento material, também o espiritual da pessoa humana, que é dotada precisamente de alma e corpo. É este o desenvolvimento integral, ao qual a doutrina social da Igreja se refere constantemente, desenvolvimento que tem o seu critério orientador na força propulsora da "caridade na verdade". Queridos irmãos e irmãs, rezemos para que também esta Encíclica possa ajudar a humanidade a sentir-se uma só família empenhada em realizar um mundo de justiça e de paz. Oremos para que os crentes, que trabalham nos sectores da economia e da política, sintam como é importante o seu testemunho evangélico coerente no serviço que prestam à sociedade. Sobretudo, convido-vos a rezar pelos Chefes de Estado e de Governo do G8 que se encontram nestes dias em L'Aquila. Desta importante Cimeira mundial possam surgir decisões e orientações úteis para o verdadeiro progresso de todos os Povos, especialmente dos mais pobres. Confiamos estas intenções à intercessão materna de Maria, Mãe da Igreja e da humanidade.

(©L'Osservatore Romano)

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Ecologia e defesa da vida colocadas lado-a-lado pelo Papa

Papa considera contradição pedir às novas gerações o respeito do ambiente «quando a educação e as leis não as ajudam a respeitar-se a si mesmas»

Bento XVI considera que um "dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento actual" é a questão do respeito pela vida, condenando mentalidades anti-natalistas e a promoção do aborto e da eutanásia.
O documento indica que "a fecundação in vitro, a pesquisa sobre os embriões, a possibilidade da clonagem e hibridação humana nascem e promovem-se na actual cultura do desencanto total, que pensa ter desvendado todos os mistérios porque já se chegou à raiz da vida".

"À difusa e trágica chaga do aborto poder-se-ia juntar no futuro - embora subrepticiamente já esteja presente in nuce - uma sistemática planificação eugenética dos nascimentos. No extremo oposto, vai abrindo caminho uma mens eutanasica, manifestação não menos abusiva de domínio sobre a vida", adverte.

Segundo Bento XVI, se "não é respeitado o direito à vida e à morte natural, se se torna artificial a concepção, a gestação e o nascimento do homem, se são sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental".

"É uma contradição pedir às novas gerações o respeito do ambiente natural, quando a educação e as leis não as ajudam a respeitar-se a si mesmas", diz o Papa.

A encíclica diz que os projectos para um desenvolvimento humano integral "não podem ignorar os vindouros, mas devem ser animados pela solidariedade e a justiça entre as gerações, tendo em conta os diversos âmbitos: ecológico, jurídico, económico, político, cultural".

Em particular, Bento XVI desenvolve as questões relacionadas com "as problemáticas energéticas", condenando "o açambarcamento dos recursos energéticos não renováveis por parte de alguns Estados, grupos de poder e empresas".

"A protecção do ambiente, dos recursos e do clima requer que todos os responsáveis internacionais actuem conjuntamente e se demonstrem prontos a agir de boa fé, no respeito da lei e da solidariedade para com as regiões mais débeis da terra", indica o documento.

O Papa observa que "a monopolização dos recursos naturais, que em muitos casos se encontram precisamente nos países pobres, gera exploração e frequentes conflitos entre as nações e dentro das mesmas".

Nesse sentido, prossegue, "a comunidade internacional tem o imperioso dever de encontrar as vias institucionais para regular a exploração dos recursos não renováveis, com a participação também dos países pobres, de modo a planificar em conjunto o futuro".

Por isso, Bento XVI frisa que também neste campo "há urgente necessidade moral de uma renovada solidariedade, especialmente nas relações entre os países em vias de desenvolvimento e os países altamente industrializados".

"As sociedades tecnicamente avançadas podem e devem diminuir o consumo energético seja porque as actividades manufactureiras evoluem, seja porque entre os seus cidadãos reina maior sensibilidade ecológica. Além disso há que acrescentar que, actualmente, é possível melhorar a eficiência energética e fazer avançar a pesquisa de energias alternativas", pode ler-se.

"O açambarcamento dos recursos, especialmente da água, pode provocar graves conflitos entre as populações envolvidas", alerta ainda a "Caritas in veritate
".

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Países pobres devem protagonizar o seu desenvolvimento

Nova encíclica deixa críticas a tentações paternalistas e anti-natalistas na cooperação internacional

Bento XVI indica na sua encíclica "Caritas in veritate" que a busca de soluções para a actual crise económica deve incluir "a ajuda ao desenvolvimento dos países pobres", considerando-o como "um verdadeiro instrumento de criação de riqueza para todos".
"Os Estados economicamente mais desenvolvidos hão-de fazer o possível por destinar quotas maiores do seu produto interno bruto para as ajudas ao desenvolvimento, respeitando os compromissos que, sobre este ponto, foram tomados a nível de comunidade internacional", refere, lembrando um dos pontos dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio.
Na cooperação internacional, prossegue, "é preciso ouvir a voz das populações interessadas e atender à situação delas para interpretar adequadamente os seus anseios". "Os programas de ajuda devem assumir sempre mais as características de programas integrados e participados a partir de baixo", acrescenta.
As ajudas internacionais destinadas ao desenvolvimento, refere Bento XVI, "podem por vezes manter um povo num estado de dependência e até favorecer situações de sujeição local e de exploração dentro do país ajudado".
Mais grave, segundo o texto, é a existência de "algumas organizações não governamentais" que "trabalham activamente pela difusão do aborto, promovendo nos países pobres a adopção da prática da esterilização, mesmo sem as mulheres o saberem".
"Além disso, há a fundada suspeita de que às vezes as próprias ajudas ao desenvolvimento sejam associadas com determinadas políticas sanitárias que realmente implicam a imposição de um forte controlo dos nascimentos", atira o documento.
O Papa diz que "as ajudas internacionais foram muitas vezes desviadas das suas finalidades, por irresponsabilidades que se escondem tanto na cadeia dos sujeitos doadores como na dos beneficiários", destacando ainda que "existem formas excessivas de protecção do conhecimento por parte dos países ricos, através duma utilização demasiado rígida do direito de propriedade intelectual, especialmente no campo da saúde".
Nesta linha de reflexão, Bento XVI diz mesmo que "os próprios organismos internacionais deveriam interrogar-se sob a real eficácia dos seus aparatos burocráticos e administrativos, frequentemente muito dispendiosos". Seria desejável, acrescenta, que "todos os organismos internacionais e as organizações não governamentais se comprometessem a uma plena transparência".
Entre outras recomendações, o Papa fala num "comércio internacional justo e equilibrado no campo agrícola" e na utilidade de promover formas novas de comercialização de produtos provenientes de áreas pobres da terra para garantir uma retribuição decente aos produtores".
Noutra passagem do documento, é referido que "os sujeitos mais débeis hão-de ser educados para se defender da usura, do mesmo modo que os povos pobres devem ser educados para tirar real vantagem do microcrédito, desencorajando assim as formas de exploração possíveis nestes dois campos".

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Do Papa actor ao Papa professor

Façam o favor de ler atentamente a sua terceira encíclica e a primeira de carácter social e digam-me se valeu ou não a pena. Não esqueçam que os estilos de João Paulo II e de Bento XVI são muito diferentes, mas enriquecem-nos.
(Rui Osório, Jornalista e pároco da Foz do Douro)

Mal foi eleito sucessor de João Paulo II, logo os media o tiveram na mira para confirmar as suas suspeitas. Em 1978, quando foi eleito para suceder a João Paulo I, o Papa Wojtyla, vindo do frio, tinha apenas 58 anos e a Imprensa dizia que era uma "atleta de Deus". Em 2005, de Roma, a Imprensa mundial diria, nalguns casos com manifesto exagero e a roçar a injúria, que o cardeal alemão Joseph Ratzinger era o "rotteweiler de Deus".
Adivinhava-se que o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé não seria um "clone" de João Paulo II, apesar de ter sido o reconhecido ideólogo do Papa polaco.
Eram iguais no conteúdo, mas bem diferentes na forma. Um sabia pisar o palco e por mais que afirmasse o que viria a dizer Bento XVI, fazia-o com bons modos, agradáveis ao mediatismo da Comunicação Social. Um, Bento XVI, continuaria na missão petrina a ser o modelo do professor universitário, muito formal e doutrinador; o outro, o polaco que chegou a Papa, era um bom actor e sabia dizer com agrado o que os media esperavam que fosse dito ou parecesse que fora afirmado, a confirmar que vale mais cair em graça do que ser engraçado.
O primeiro semestre de 2009 terá sido o mais difícil dos quatro anos do pontificado de Bento XVI. Primeiro, foi a surpreendente reabilitação dos quatro bispos tradicionalistas seguidores do cismático arcebispo Marcel Lefèbvre, sem garantias algumas que aceitem o magistério do Concílio Vaticano II; depois, foi o uso do preservativo em África; e, mais tarde, os discursos na Terra Santa.
A revista espanhola "Vida Nueva" ouviu conhecidos vaticanistas. Gian Franco Svidercoschi, que fora subdirector de "L'Osservatore Romano", confirma que está a ser uma "ano difícil", para dizer que o "problema principal da Igreja, em particular da Santa Sé, é o da comunicação".
Quem diria que João Paulo II que chegou a Roma sem experiência da Cúria lhe imprimiria o seu estilo e mereceria respeito e Bento XVI, com larga experiência romana, seria vítima da desorganização curial, que lhe esconderia que um dos bispos lefebvrianos reabilitados nega o Holocausto nazi que sacrificou milhões de judeus?!
Já para Valentina Alazraki, correspondente do Vaticano da Televisa, são visíveis as "diferenças entre Bento XVI e João Paulo II, nas relações com os média". A razão é simples: João Paulo II "sabia comunicar", embora as suas "convicções morais ou doutrinais fossem as mesmas de Bento XVI". Ou seja, mesmo quando dizia "verdades incómodas ou impopulares", João Paulo II sabia como deveria fazê-las aceitar e não tinha medo da Imprensa.
Para o jornalista do diário "Il Giornale", Andrea Tornioelli, a crise de comunicação está na Cúria Romana, em particular na Secretaria de Estado, dirigida pelo cardeal Tarcisio Bertone.
Para o ex-vaticanista do "Corriere della Sera", Luigi Accattoli, Bento XVI é um "Papa solista" e a Cúria deixou de ser a corte que "ajuda a prever e a acompanhar os actos pontifícios".
Bento XVI tem sido julgado mais severamente do que o seu antecessor. Não é fácil aceitá-lo como "Papa teólogo" que pretende pôr as coisas no devido lugar. Em vez de afeito a "fait divers", é um Papa que defende e promove a "teologia pura". E nada disso é mediático. Por isso, cobram-lhe uma elevada factura e não lhe perdoam deslizes, por muito que o seu magistério, a largo prazo, venha a ser uma referência cultural.
Diante de João Paulo II, de cuja eleição fiz a cobertura jornalística em Roma, apetecia-me, desde a primeira hora, aplaudir um grande actor. Perante Bento XVI, cuja eleição acompanhei em Roma, em 2005, não me apeteceu aplaudi-lo - e teria desejado que tivesse sido escolhido outro -, mas contive-me para não o patear. Admiro-o agora na sua pedagogia teológica, que lhe valoriza o magistério, e lamento que tenha tão má Imprensa. Merece mais atenção e um aplauso discreto, mas sentido e agradecido.
Façam o favor de ler atentamente a sua terceira encíclica e a primeira de carácter social e digam-me se valeu ou não a pena. Não esqueçam que os estilos de João Paulo II e de Bento XVI são muito diferentes, mas enriquecem-nos.
Rui Osório, Jornalista e pároco da Foz do Douro

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Um lugar para Deus na esfera pública


A encíclica "Caritas in veritate" advoga um desenvolvimento que inclua "o espiritual", para evitar alguns dos males que afligem as sociedades ditas desenvolvidas.


"A alienação social e psicológica e as inúmeras neuroses que caracterizam as sociedades opulentas devem-se também a causas de ordem espiritual. Uma sociedade do bem-estar, materialmente desenvolvida mas oprimente para a alma, de per si não está orientada para o autêntico desenvolvimento", escreve o Papa.
"As novas formas de escravidão da droga e o desespero em que caem tantas pessoas têm uma explicação não só sociológica e psicológica, mas essencialmente espiritual. O vazio em que a alma se sente abandonada, embora no meio de tantas terapias para o corpo e para o psíquico, gera sofrimento", prossegue.
A encíclica considera que "uma certa proliferação de percursos religiosos de pequenos grupos ou mesmo de pessoas individuais e o sincretismo religioso podem ser factores de dispersão e de apatia".
"Um possível efeito negativo do processo de globalização é a tendência a favorecer tal sincretismo, alimentando formas de «religião» que, em vez de fazer as pessoas encontrarem-se, alheiam-nas umas das outras e afastam-nas da realidade", aponta.
Para o Papa, a religião cristã e as outras religiões só podem dar o seu contributo para o desenvolvimento "se Deus encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, económica e particularmente política".
"A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este «estatuto de cidadania» da religião cristã", recorda.
Bento XVI explica que "viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral".
"Um cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social mas marginais", indica.
Bento XVI considera que "não há desenvolvimento pleno nem bem comum universal sem o bem espiritual e moral das pessoas".
O documento chama a sociedade actual a uma "séria revisão do seu estilo de vida" que, em muitas partes do mundo, "pende para o hedonismo e o consumismo, sem olhar aos danos que daí derivam", apelando também à "responsabilidade social do consumidor".
Por tudo isto, Bento XVI defende que "o desenvolvimento implica atenção à vida espiritual". "O humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano. Só um humanismo aberto ao Absoluto pode guiar-nos na promoção e realização de formas de vida social e civil", pode ler-se.
Os media são outro alvo das considerações. O Papa afirma que "os meios de comunicação social não favorecem a liberdade nem globalizam o desenvolvimento e a democracia para todos, simplesmente porque multiplicam as possibilidades de interligação e circulação das ideias".
"Para alcançar tais objectivos, é preciso que estejam centrados na promoção da dignidade das pessoas e dos povos", precisa.

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Papa condena deslocalizações e precariedade no trabalho.

Bento XVI considera que situação estrutural de insegurança gera comportamentos antiprodutivos.

A nova encíclica de Bento XVI, "Caritas in veritate", condena as actuais práticas de deslocalizações e de precariedade no trabalho, afirmando que "uma situação estrutural de insegurança gera comportamentos antiprodutivos e de desperdício de recursos humanos".
"Não é lícito deslocalizar somente para gozar de especiais condições de favor ou, pior ainda, para exploração, sem prestar uma verdadeira contribuição à sociedade local", enfatiza.

O Papa questiona a "redução das redes de segurança social", considerando que a mesma acarreta um "grave perigo para os direitos dos trabalhadores", e lamenta situações de "falta de protecção eficaz por parte das associações de trabalhadores".

Bento XVI escreve que a gestão da empresa "não pode ter em conta unicamente os interesses dos proprietários da mesma, mas deve preocupar-se também com as outras diversas categorias de sujeitos que contribuem para a vida da empresa: os trabalhadores, os clientes, os fornecedores dos vários factores de produção, a comunidade de referência".

O documento fala da importância das várias tipologias de empresariado, que ultrapassam o binómio mercado-Estado com formas de economia solidária: "Não se trata apenas de um «terceiro sector», mas de uma nova e ampla realidade complexa, que envolve o privado e o público e que não exclui o lucro mas considera-o como instrumento para realizar finalidades humanas e sociais".

Bento XVI identifica um "nexo directo entre pobreza e desemprego. Em muitos casos, os pobres são o resultado da violação da dignidade do trabalho humano". A encíclica inclui uma chamada de atenção também para "a urgente necessidade de as organizações sindicais dos trabalhadores - desde sempre encorajadas e apoiadas pela Igreja - se abrirem às novas perspectivas que surgem no âmbito laboral", sobretudo a favor dos trabalhadores explorados e não representados.

Uma longa passagem do documento explica o que o Papa entende por um trabalho "decente", ou seja, "um trabalho que, em cada sociedade, seja a expressão da dignidade essencial de todo o homem e mulher: um trabalho escolhido livremente, que associe eficazmente os trabalhadores, homens e mulheres, ao desenvolvimento da sua comunidade".

O documento defende um trabalho que "permita aos trabalhadores serem respeitados sem qualquer discriminação; um trabalho que consinta satisfazer as necessidades das famílias e dar a escolaridade aos filhos, sem que estes sejam constrangidos a trabalhar".

Também para os reformados é pedida uma "uma condição decorosa".

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Nova ordem internacional

Terceira encíclica do Papa pede autoridade política mundial para governar a globalização e superar a crise.


Bento XVI defende na sua terceira encíclica, "Caritas in Veritate" (A caridade na verdade), uma nova ordem política e financeira internacional, para governar a globalização e superar a crise em que o mundo se encontra mergulhado.
No documento, o Papa apresenta como prioridade a "reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional", sentida em especial "perante o crescimento incessante da interdependência mundial", mesmo no meio de uma "recessão igualmente mundial".
Em vésperas de mais uma reunião do G8, a nova encíclica diz que esta "verdadeira Autoridade política mundial", pedida no texto, teria como objectivos prioritários "o governo da economia mundial", o desarmamento, "a segurança alimentar e a paz", a defesa do ambiente e as regulações dos fluxos migratórios. Outra necessidade apontada é a de ajudar "as economias atingidas pela crise de modo a prevenir o agravamento da mesma e, em consequência, maiores desequilíbrios".
É sobretudo a questão financeira que merece um olhar atento neste documento, que identifica "tendência actuais para uma economia a curto, senão mesmo curtíssimo prazo" e assinala que "isto requer uma nova e profunda reflexão sobre o sentido da economia e dos seus fins, bem como uma revisão profunda e clarividente do modelo de desenvolvimento".
"Um dado é essencial: a necessidade de trabalhar não só para que nasçam sectores ou segmentos «éticos» da economia ou das finanças, mas também para que toda a economia e as finanças sejam éticas", assinala o documento, em que nunca aparece a palavra capitalismo.
Bento XVI considera que os "princípios tradicionais da ética social", como a transparência, a honestidade e a responsabilidade, continuam a ter lugar nos dias de hoje para enfrentar "problemáticas do desenvolvimento neste tempo de globalização", em especial perante a crise económico-financeira.
O documento indica que "também nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal".
O Papa considera que todo o sistema financeiro "deve ser orientado para dar apoio a um verdadeiro desenvolvimento". "Há que considerar errada a visão de quantos pensam que a economia de mercado tenha estruturalmente necessidade duma certa quota de pobreza e subdesenvolvimento para poder funcionar do melhor modo", alerta.
Neste sentido, apela a uma regulamentação do sector capaz de impedir "especulações escandalosas", referindo que à luz da actual crise fica claro que "o progresso económico se revela fictício e danoso quando se abandona aos «prodígios» das finanças para apoiar incrementos artificiais e consumistas".
"E preciso que as finanças enquanto tais - com estruturas e modalidades de funcionamento necessariamente renovadas depois da sua má utilização que prejudicou a economia real - voltem a ser um instrumento que tenha em vista a melhor produção de riqueza e o desenvolvimento", aponta.
"A doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que tem a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado", prossegue o texto, indicando que "sem formas internas de solidariedade e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plenamente a sua própria função económica".
Bento XVI sublinha que a actual crise veio destacar ainda mais "anomalias e problemas dramáticos" presentes no desenvolvimento económico. "Cresce a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas pobrezas", lamenta, falando ainda de "situações de miséria desumanizadora", corrupção e ilegalidade.
A encíclica aborda "pecados" económicos e critica a "convicção de ser auto-suficiente". Mais à frente, diz que "a convicção da exigência de autonomia para a economia, que não deve aceitar «influências» de carácter moral, impeliu o homem a abusar dos instrumentos económicos, até mesmo de forma destrutiva".
"É preciso evitar que o motivo para o emprego dos recursos financeiros seja especulativo, cedendo à tentação de procurar apenas o lucro a breve prazo sem cuidar igualmente da sustentabilidade da empresa a longo prazo", escreve Bento XVI.
No mesmo sentido, precisa-se que "o objectivo exclusivo de lucro, quando mal produzido e sem ter como fim último o bem comum, arrisca-se a destruir riqueza e criar pobreza".
"A economia tem necessidade da ética para o seu correcto funcionamento; não de uma ética qualquer, mas de uma ética amiga da pessoa", frisa o Papa.
Modelos para a globalização
A "sociedade em vias de globalização" é o alvo preferencial de várias considerações de Bento XVI na "Caritas in veritate". Olhado para as várias intervenções dos seus predecessores em matéria social, o actual Papa considera que a principal novidade do nosso tempo "foi a explosão da interdependência mundial, já conhecida comummente por globalização".
"A globalização - escreve - é um fenómeno pluridimensional e polivalente, que exige ser compreendido na diversidade e unidade de todas as suas dimensões, incluindo a teológica."
Bento XVI avisa que "o processo de globalização poderia substituir as ideologias com a técnica, passando esta a ser um poder ideológico", pedindo por isso uma "formação para a responsabilidade ética no uso da técnica".
O Papa não alinha com as "atitudes fatalistas" a respeito deste fenómeno, que mostra a realidade de "uma humanidade cada vez mais interligada". Ainda assim, declara que "é preciso corrigir as suas disfunções, tantas vezes graves, que introduzem novas divisões" e fazer com que "a redistribuição da riqueza não se verifique à custa de uma redistribuição da pobreza ou até com o seu agravamento, como uma má gestão da situação actual poderia fazer-nos temer".
"Na época da globalização, a actividade económica não pode prescindir da gratuidade, que difunde e alimenta a solidariedade e a responsabilidade pela justiça e o bem comum em seus diversos sujeitos e actores. Trata-se, em última análise, de uma forma concreta e profunda de democracia económica", observa Bento XVI.
Neste contexto, diz o Papa, "eliminar a fome no mundo tornou-se também um objectivo a alcançar para preservar a paz e a subsistência da terra". "Poderia revelar-se útil considerar as novas fronteiras abertas por um correcto emprego das técnicas de produção agrícola, tanto as tradicionais como as inovadoras, desde que as mesmas tenham sido, depois de adequada verificação, reconhecidas oportunas, respeitadoras do ambiente e tendo em conta as populações mais desfavorecidas", indica.

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