22 março 2012

Doutrina Social da Igreja

Rubrica Semanal do Programa Ecclesia


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22 julho 2009

Uma Encíclica que irrita

«Caridade na Verdade» é um texto altamente irritante. É isso mesmo: um manual para o desassossego

Lembro-me muitas vezes da banda-desenhada cheia de humor de Quino, em que a irrequieta e incisiva Mafalda está com um ar abstracto e imperscrutável e diz que está a parecer-se com uma Encíclica Papal.
É uma forma engraçada de pôr o dedo na ferida, pois o grande risco é, de facto, o da recepção "abstracta e imperscrutável"que fazemos de textos que são afinal de uma impressionante concretude, agudeza e profecia.

Por vezes sinto que fazemos das "Encíclicas Papais" um género literário, altamente respeitável, mas inofensivo. A vida continua a correr com o pragmatismo do costume, indiferente quanto baste ao horizonte ideal que a tradição cristã nos aponta.

Talvez por isso, me apeteça saudar um pequeno texto de Henrique Raposo, que me incomodou muito, mas que, não posso negar, me tornou mais atento no acolhimento da Encíclica ("Expresso" (11/07/2009).

Diz o seguinte: «Não tenho problemas com o Papa, e até gosto de católicos. Mas há uma coisa que me irrita no Papa: é quando ele se põe a trazer Marx para o Evangelho. Aquilo que o Papa tem dito sobre a - suposta - falta de ética do capitalismo não ficaria mal na colectânea dos Summer hits de Francisco Louçã. Não vou aqui desconstruir a falácia antiliberal que está presente na Igreja Católica. Deixo somente uma pergunta: no "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus" qual é a parte que o Papa não entende?».

É evidente que este autor entende muito pouco do cristianismo. Em vez de Marx, ele deveria perceber que o Papa liga-se à tradição bíblica e Evangélica mais genuínas, aos Padres da Igreja e a todo o extraordinário património de pensamento e acção no campo da solidariedade humana de que a Doutrina Social da Igreja tem sido esteio. Mas numa coisa Henrique Raposo tem razão: Bento XVI irrita e esta sua encíclica, "Caridade na Verdade" é um texto altamente irritante. É isso mesmo: um manual para o desassossego.

José Tolentino Mendonça

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15 julho 2009

Para ver mais longe do que a crise

D. Manuel Felício e a nova Encíclica do Papa Bento XVI

Depois de uma encíclica sobre Deus – “Deus Caritas est” (2005) e outra sobre a Esperança que deve animar todos os construtores da História – “Spe salvi” (2007), o Papa Bento XVI acaba de publicar, com data de 29 de Junho e apresentação pública de 7 de Julho, a sua terceira encíclica, esta sobre a questão social (“Caritas in veritate”).
Aparece esta carta papal num momento de crise generalizada em todo o mundo – crise financeira, crise económica, mas sobretudo crise de valores e de sentido para a vida das pessoas individualmente consideradas e também no tecido das suas relações sociais.
Mas a crise também pode ser oportunidade e nós já nos habituámos a ouvir muitos actores da nossa sociedade, principalmente os fazedores de opinião, a dizer que, depois desta crise, nada ficará igual, que o desenvolvimento baseado no puro consumismo não é sustentável e, portanto, não tem futuro, que as pessoas têm de se converter a novos hábitos de vida, sobretudo quanto à utilização dos recursos oferecidos pela natureza que não são inesgotáveis.
A nova encíclica, nos seus 79 números, sugere caminhos alternativos para o percurso das pessoas e das sociedades em direcção a uma nova ordem social.
De entre eles sublinho dois que, se forem levados a sério, abrem portas ao novo futuro que todos desejamos.
Primeiro deles: não é qualquer desenvolvimento ou o desenvolvimento pago a qualquer preço que nos interessa. Só nos interessa o desenvolvimento humano integral. E este é caracterizado na encíclica como sendo uma vocação para o progresso que leva as pessoas a realizar, conhecer e possuir mais para serem mais (ver nº 18). Por sua vez, para o subdesenvolvimento, que infelizmente continua a afectar grande número de pessoas e povos, é apontada uma causa endémica. Essa causa é a falta de fraternidade entre as pessoas e os povos (ver nº19).
Ora, os modelos de criação e distribuição de riqueza que temos e, em particular, o fenómeno mais recente da globalização, entregues a si mesmos e sem qualquer regulação, provaram já que não são capazes de promover a fraternidade, antes, pelo contrário, têm gerado cada vez mais desigualdades e maior afastamento das pessoas e grupos de pessoas entre si.
A encíclica conclui que a vocação à fraternidade vem de Deus e só Ele a pode levar ao seu pleno cumprimento. Portanto, desenvolvimento integral sem Deus é impensável.
Segundo: Os mercados financeiros e outros não podem continuar sem regulação, como tem acontecido até agora, única e simplesmente entregues à sua lógica interna, que já provou ser geradora de muita perversidade. Lembra a encíclica que é preciso introduzir ética nos mercados e é preciso também criar uma autoridade internacional competente e com meios para exercer a sua necessária função reguladora. Fala mesmo na necessidade de ser criada uma autoridade política mundial (ver nº42).
Esta e outras medidas estão a ser exigidas como resposta à crise, mas principalmente para inaugurar uma nova ordem mundial que promova a autêntica humanização da sociedade.
Chega a encíclica do Papa numa hora crucial para a Humanidade, uma hora em que a “a crise nos obriga a projectar de novo o nosso caminho, a impor-nos regras novas e a encontrar novas formas de empenhamento, a apostar em experiências positivas e a rejeitar as negativas” (nº21).
Os critérios e as sugestões nela apontados são contributo decisivo não só para superar a crise, mas sobretudo para ajudar a cumprir a utopia de modelos de sociedade alternativos àquele em que vivemos e que nos foi apresentado como promessa de resposta para todos os anseios humanos e solução para todos os problemas.
Mas, de facto, a promessa não se cumpriu.

+Manuel Felício, Bispo da Guarda

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14 julho 2009

Uma Igreja presente ao mundo

A primeira encíclica social de Bento XVI teve de esperar pela evolução da grave crise económica global, originada numa crise financeira onde a falta de ética se fez sentir de maneira chocante. (Francisco Sarsfield Cabral)

E, não por acaso, a encíclica Caritas in Veritate foi divulgada nas vésperas do encontro do G8 em Aquila, Itália. Após a reunião do G8, o Presidente Obama foi recebido em audiência, pelo Papa.
Estes factos mostram que a Igreja quer estar presente ao mundo e tem uma palavra a dizer sobre ele. Não que a Igreja possua soluções técnicas, políticas ou económicas. Mas tem algo mais importante: é "perita em humanidade", como dizia Paulo VI. A Doutrina Social da Igreja é teologia moral e por isso oferece uma visão integral do homem e do desenvolvimento. Este jamais pode desligar-se dos valores fundamentais, sob pena de deixar de ser desenvolvimento.

Obama e o Papa

O encontro de Bento XVI com Barack Obama evidencia a importância do diálogo dos católicos com pessoas de outras religiões ou de nenhuma religião, procurando tornar menos penosa a vida dos homens. Diálogo que a encíclica considera necessário para o progresso da humanidade.

Recorde-se que surgiram muitas críticas de católicos quando Obama foi convidado a falar na Universidade Católica de Notre Dame, nos Estados Unidos. Isto porque o presidente americano admite o aborto. Simplesmente, Obama parece ser um homem de boa vontade - e com pessoas assim é possível o diálogo, por muito divergentes das nossas que sejam as suas ideias. E, de facto, o diálogo do Papa com Obama correu bem. É uma lição que convém não esquecer.

Dimensão teológica
A publicação da Caritas in Veritate por altura da reunião do G8 foi um gesto de oportunidade. Nessa reunião até se deram alguns passos positivos no apoio à agricultura dos países pobres, indo ao encontro do que a Igreja há muito reclama.

Mas receio que a encíclica, em geral recebida de modo favorável, possa ser insuficientemente entendida na sua profunda dimensão teológica. Embora rica em propostas, pistas e sugestões, a Caritas in Veritate vale, acima de tudo, pela fundamentação antropológica e teológica que traz à Doutrina Social da Igreja. A encíclica liga de forma exemplar as questões mais concretas a uma concepção forte do que é a pessoa humana.

Ora esta ligação implica um texto longo e denso, a que a nossa cultura mediática, sensível a slogans e a simplismos redutores, é geralmente alérgica. Naturalmente, aquilo que os meios de comunicação social colheram na encíclica teve sobretudo a ver com propostas concretas de Bento XVI, muitas delas já apresentadas por anteriores papas - como foi o caso da criação de uma autoridade política mundial para enquadrar alguns aspectos da globalização.

Contra o relativismo

Tais propostas são importantes, mas não esgotam a Caritas in Veritate. O essencial está no aprofundamento antropológico e teológico das questões que a encíclica aborda. E na fundamentação metafísica das mensagens éticas que transmite.

Trata-se, assim, de um texto típico de Bento XVI. Há muito que o teólogo Ratzinger tem como principal alvo das suas críticas o relativismo, a ideia - filosófica, mas com grande expressão prática no mundo actual - de que tudo se equivale, nada sendo susceptível de sólida justificação. No plano moral, esta visão das coisas tem, ou pode ter, consequências devastadoras. É que uma "concepção débil da pessoa" (expressão de J. Ratzinger) é incapaz de dar força aos direitos humanos e às exigências éticas de fundo.

Francisco Sarsfield Cabral, Jornalista

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Um mundo de reacções

A encíclica “Caritas in veritate”, de Bento XVI, gerou um pouco por todo o mundo uma verdadeira chuva de reacções, com os mais variados elogios, que chegaram mesmo ao ponto de defender a atribuição de um prémio Nobel da Economia, pelo texto.



As reacções começaram logo no dia da publicação do documento. O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), D. Jorge Ortiga, em Fátima que a encíclica chega “na hora exacta”, destacando a importância que o texto pode ter para a avaliação dos programas políticos nas próximas eleições, no nosso país.
“Esta carta-encíclica, se fosse lida e meditada por todos os cristãos, em primeiro lugar, e particularmente também pelos políticos, num tempo que se aproxima de eleições e campanhas eleitorais, de programas que vão ser elaborados, estou convencido que seria muito útil”, defendeu o prelado.
Num encontro inédito, destinado a apresentar o novo documento do Papa, o Arcebispo de Braga disse ser necessário discutir o texto “com a sociedade portuguesa”, em especial para ajudar a formar um voto mais “consciente”, como a CEP já tinha pedido na sua última Assembleia Plenária. De acordo com D. Jorge Ortiga, “a Igreja não se quer intrometer em questões políticas, mas há uma doutrina que se repercute em vários sectores da vida”.
Nesse sentido, defendeu que a “Caritas in veritate” (Caridade na verdade) contém um “conjunto de orientações que poderão enriquecer muito a sociedade portuguesa”.
Alfredo Bruto da Costa, presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP), foi o convidado da CEP para comentar a nova encíclica, “um documento extremamente denso”. “O Papa evita que se confunda caridade com sentimentalismo, com um conjunto de bons sentimentos muitas vezes inconsequentes”, adianta.
O especialista considerou que a encíclica não é “sobre a crise”, mas “sobre o desenvolvimento humano”, com um “olhar sobre a caridade na verdade”, escrita “em tempo de crise, mas válido para a situação do mundo antes da crise e depois da crise, se durante a mesma não houver mudanças substanciais”.
D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa e presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social, disse à Agência ECCLESIA que com a publicação da sua terceira encíclica Bento XVI oferece-nos um “denso tratado sobre o desenvolvimento de cada pessoa e sobre o desenvolvimento da humanidade na visão cristã”. E acrescenta: “Sentimo-nos como que diante de uma grande e bela tapeçaria tecida pelos fios da caridade e da verdade”.
O Bispo das Forças Armadas e Forças de Segurança, D. Januário Torgal Mendes Ferreira, defende que o empenhamento no social deveria ser a “«bandeira» da Igreja (aberta à direita e à esquerda, na independência e responsabilidade)”.
Num comentário à nova encíclica de Bento XVI sobre a temática do “ensino social” da Igreja, este responsável diz que o texto “oferece-nos a oportunidade da Comunhão e da vontade da mudança do mundo através de critérios indiscutíveis”.
Várias instituições internacionais, até mesmo fora da Igreja Católica, têm manifestado publicamente o seu apreço e admiração pela nova encíclica. “Num momento em que os migrantes são vistos, muitas vezes, como um problema, é de grande importância o convite do Papa a levar em consideração os direitos que, hoje, estão em risco, devido à crise económica e profissional, e de políticas para a segurança que confundem palavras como migrantes e clandestinos”, afirma a Amnistia Internacional.
Para a Cáritas Internacional, o destaque que a nova encíclica de Bento XVI coloca na justiça e no bem comum oferece uma nova visão da economia, da política e da sociedade baseada na responsabilidade partilhada do cuidado pela humanidade e pelo ambiente.
“Centrar apenas no lucro e nos interesses individuais conduziu-nos a consequências viciantes”, afirma por seu lado a CIDSE, plataforma de organizações católicas para o desenvolvimento, sediada em Bruxelas. A CIDSE “sente-se apoiada pelo forte apelo do Papa para um desenvolvimento e progresso económico baseado na ética e na justiça, que coloque o homem no centro”.

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Ser cristão num mundo globalizado e em crise

O desenvolvimento deve ser integral e universal, inclusivo e participativo, subsidiário e solidário, justo e amigo do bem comum, ecológico e sustentável, fundado no amor e na verdade (José Augusto Leitão, svd)

Bento XVI publicou a sua terceira encíclica dedicada ao desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade: "Caritas in veritate".
É uma reflexão profunda que apresenta a Doutrina da Social da Igreja, tendo como base a encíclica de Paulo VI: "Populorum progressio" (1967) e a sua noção de desenvolvimento do "Homem todo e todo o homem".

O contexto actual da globalização e da crise económico-financeira justificam uma reflexão nova que nasce da fé e da razão dum Pastor com coração e solicitude universal.

Como homem de fé, Bento XVI, alerta para os perigos dum humanismo sem Deus, nem referência ao "mais" da transcendência: "Um humanismo que exclui Deus é um humanismo desumano. (...) O amor de Deus chama-nos a sair daquilo que é limitado e não definitivo, dá-nos coragem de agir continuando a procurar o bem de todos" (nº78). Quem perde o sentido de Deus, facilmente cai no relativismo, no laicismo e na idolatria da técnica e da ciência. Por outro lado, o fundamentalismo ou expressões religiosas que negam o valor da criação alienam-nos da construção do bem comum. Só a caridade na verdade, que nasce da fé no Deus Trindade, nos pode ajudar a superar a visão materialista da realidade e a reconhecer no outro um irmão, membro da mesma família que chama a Deus: Pai-Nosso (cf. nº71, 79).

O Papa, convida-nos ao discernimento guiado pela razão, pois o desenvolvimento integral e universal é uma vocação que exige uma boa fundamentação ética, uma análise interdisciplinar e uma participação responsável de todos. "O actual quadro do desenvolvimento é policêntrico" e devemos libertar-nos das "ideologias que o simplificam" (nº22). Daí a importância da formação e da educação para o desenvolvimento e a sensibilidade para o bem comum, baseados na caridade e na verdade. "A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos" (nº 19).

O desenvolvimento deve ser integral e universal, inclusivo e participativo, subsidiário e solidário, justo e amigo do bem comum, ecológico e sustentável, fundado no amor e na verdade. Por outro lado, Bento XVI identifica algumas opções que não contribuem para o desenvolvimento e que enumero sumariamente: o assistencialismo e a dependência, a exclusão e o monopólio, a exploração e especulação, a ilegalidade e a corrupção, a falta de transparência e o autoritarismo, a violência e a procura desenfreada do lucro, as políticas contra a vida e o meio ambiente, as relações desiguais por motivos culturais, religiosos, de poder ou tecnológico.

Como membro de uma organização missionária (Rede Fé e Justiça Europa-África - AEFJN) que procura mais justiça nas relações entre a Europa e a África, gostei de ler que a doutrina social da Igreja é um elemento essencial da evangelização: "O testemunho da caridade de Cristo através de obras de justiça, paz e desenvolvimento faz parte da evangelização, pois a Jesus Cristo que nos ama, interessa o homem inteiro." (nº 15)

A encíclica aprofunda temas como a globalização, o mercado, o ambiente e a técnica: "É preciso empenhar-se sem cessar por favorecer uma orientação cultural personalista e comunitária, aberta á transcendência, do processo de integração mundial" (nº 42).

O ser humano, presente e futuro, é o centro de todas estas reflexões: "Nas intervenções em prol do desenvolvimento, há que salvaguardar o princípio da centralidade da pessoa humana, que é o sujeito que primariamente deve assumir o dever do desenvolvimento" (nº47). Por isso, o Papa preocupa-se com as desigualdades entre pessoas e povos, as migrações e o desemprego, o turismo e exploração sexual, a falta de respeito pelos direitos humanos, a deslocação de empresas, as formas de participação da sociedade civil, a regulação nacional e internacional do mercado, a interacção das culturas e a paz, a fome e a pobreza, o acesso à água e à educação, o respeito pela vida e pela liberdade, a bioética, a finança ética e o microcrédito, os meios de comunicação social e a democracia económica.

A cooperação e ajuda internacional têm neste documento critérios e análises fundamentais para uma reflexão e avaliação das práticas dos Estados, empresas e organizações não governamentais (cf. Nº 47, 57-60).

Termino, citando um parágrafo com o qual a AEFJN se identifica totalmente: "Sente-se a urgência de encontrar formas inovadoras para actuar o princípio da responsabilidade de proteger e para atribuir às nações mais pobres uma voz nas decisões comuns" (nº 67).

José Augusto Duarte Leitão, svd, Responsável da AEFJN Portugal

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A Lógica da Caridade

Toda esta Encíclica, precisamente porque liga a caridade com a verdade e vice-versa, assenta precisamente num discurso sobre a lógica do amor. Nesse sentido, proponho um comentário baseado nos diversos níveis dessa lógica, que me parecem corresponder, também, à lógica interna do documento (João Duque)

"A verdade abre e une as inteligências no lógos do amor: tal é o anúncio e o testemunho cristão da caridade. No actual contexto social e cultural, em que aparece generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento humano integral" (Caritas in veritate, nº 4)
Gostaria de começar o meu breve comentário à mais recente Carta Encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate, por esta citação, que me parece concentrar em si os principais objectivos de todo o documento. E gostaria de começar por me fixar no termo logos, que permite variadas traduções. Neste caso, prefiro concentrar-me naquela que originou, nas nossas línguas, a expressão lógica. De facto, o logos ou o discurso, também o pensamento sobre algo, implica uma lógica própria. Assim, poderíamos traduzir a expressão "logos do amor" por lógica do amor.

Ora, trata-se de uma expressão algo estranha. De facto, estamos habituados a reduzir a lógica ao âmbito matemático-científico, quando muito ao contexto argumentativo, o que parece não permitir falar de uma lógica do amor, pois o amor escaparia a toda a lógica. Ora, toda esta Encíclica, precisamente porque liga a caridade com a verdade e vice-versa, assenta precisamente num discurso sobre a lógica do amor. Nesse sentido, proponho um comentário baseado nos diversos níveis dessa lógica, que me parecem corresponder, também, à lógica interna do documento.

1. O primeiro nível tem a ver com a fundamental compreensão bíblico-cristã da noção de verdade. Poderíamos chamar-lhe o nível da lógica da acção. De facto, a noção bíblica de verdade é bastante mais abrangente do que a que a reduz ao puro nível do discurso e mesmo da ciência. Porque, no contexto bíblico - que é o contexto cristão - a verdade salva e liberta, possui por isso uma força performativa própria, realizando algo na nossa existência. Em correspondência a essa força activa da verdade, a verdade vivida pelo cristão é uma verdade pragmática, pois a verdade é para ser feita, não apenas para ser dita ou pensada. É claro que também deve ser dita e pensada - pois isso é já fazer algo. Mas, a finalidade última da verdade é uma pragmática que transforme os corações e, por essa via, toda a realidade, sobretudo na sua dimensão sócio-cultural.

Por isso, o cristianismo não é simplesmente uma filosofia, se entendermos por isso um conjunto abstracto de ideias que dizem respeito, mais ou menos, à realidade. É claro que as ideias possuem uma força transformadora própria. Mas podem fechar-se no puro e abstracto jogo ideológico de si mesmas. Nesse sentido, o cristianismo não assenta numa ideia. Também não pode, como tal, ser reduzido a uma espiritualidade desencarnada, que apenas sirva para consolo interior dos indivíduos. Por mais que tenha havido leituras e práticas do cristianismo que o reduziram a essa dimensão espiritual e privada, essas reduções têm significado sempre um desvio da sua verdade. Na história, como na actualidade, esse desvio - a que poderíamos chamar genericamente gnosticismo - tem sido uma das maiores tentações do cristianismo.

Também na actualidade, a tentação gnóstica continua a lançar a sua sombra. Muitas vezes, essa sombra surge no próprio interior do cristianismo, por impulso daqueles grupos que o reduzem a uma actividade interna, orientada para uma dimensão do indivíduo a que se vai chamando «espiritualidade» e que o isola do quotidiano, da dimensão «política», que fica assim relegada para o âmbito do puramente «profano». O cristão atingido por esta tendência, ou se refugia numa vida ideal, alheia ao mundo que o rodeia, ou divide a sua vida esquizofrenicamente entre práticas cristãs (apenas espirituais) e a prática quotidiana, que nada tem a ver com as convicções cristãs.

A própria sociedade, sobretudo por efeitos da modernidade europeia, habituou-se a compartimentar os sujeitos e as instituições, relegando o cristianismo e as suas práticas para o âmbito privado, negando-lhe por isso pertinência pública. Esse é um modo sócio-político de contradizer a lógica cristã, como lógica da acção, concebida como acção integral. E muitos estados ditos «laicos» baseiam nessa perspectiva a sua crítica - e mesmo a sua proibição, muitas vezes - da intervenção pública dos cristãos, pessoal ou institucionalmente considerados.

Mas a lógica - a verdade - do cristianismo é precisamente a lógica do amor, que é de ordem prática e não conhece recantos simplesmente privados, pois envolve a pessoa toda e todas as pessoas. Por isso, na lógica da sua acção estão incluídos todos os problemas e todas as possibilidades da humanidade sua contemporânea. Por isso se torna legítima - e mesmo exigida - a sua intervenção a propósito de todas essas questões, que estão ligadas à acção quotidiana dos nossos contemporâneos, cristãos ou não. É nesse contexto que se justifica a denominada «doutrina social da Igreja». Não como contributo científico nos âmbitos da economia, da política ou da sociologia. Mas como leitura de tudo isso, no contexto da sua lógica própria. E como proposta para o bem-estar integral - com significado salvífico - de todos os humanos.

E essa lógica, por ser a lógica da caridade, tem por finalidade, não apenas fazer uma leitura crítica das realizações humanas, mas também sugerir realizações específicas, que possam ajudar a que a lógica da caridade vá dando frutos, ao longo da história humana. É claro que, dada a especificidade da lógica da caridade, as realizações históricas serão sempre limitadas e falíveis, mesmo que se inspirem no amor que salva. Porque só Deus salva e só Ele terá a última palavra sobre a história humana.



2. Um dos elementos importantes da acção cristã é, por isso mesmo, a consciência ou reconhecimento de que a verdade, que deve ser feita, não é uma verdade já feita pelos humanos, consoante os seus interesses e as suas perspectivas. Trata-se de uma verdade que é sempre dada, como tarefa a realizar. Nesse sentido, um dos elementos básicos da lógica da caridade é o facto de se tratar de uma lógica do dom. Antes de tudo, porque a verdade que fundamenta essa lógica é uma dádiva, em si mesma, e não um produto nosso. Por essa razão, a dádiva que, antes de tudo, se nos dá para ser feita, é a própria verdade. A verdade dada é, portanto, para que reconheçamos a dádiva como verdade - verdade de Deus e verdade dos humanos.

Assim, a verdade é-nos dada, para ser realizada, entre nós, enquanto dádiva, enquanto doação mútua. Ora, a dádiva é da ordem do gratuito. O que se dá, não se dá por interesse em receber algo em troca, muito menos para daí retirar algum lucro. Se assim não for, não existe dádiva ou dom, mas apenas negócio, mercado. A verdade da caridade, como verdade do ser humano, na perspectiva cristã, é que as relações humanas se devem medir por esta capacidade de dar gratuitamente. Mesmo que haja níveis de permuta inter-humana que não sejam gratuitos, o nível da gratuidade deve ser o mais profundo e fundamental.

Esta carta encíclica, por ser uma carta essencialmente de doutrina social da Igreja, afirma claramente que a lógica do dom se deve aplicar, também, ao nível das relações económicas, mesmo ou sobretudo da macro-economia. O capítulo terceiro é todo dedicado à exploração dessas possibilidades. É claro que se trata de uma proposta que parece desconcertante, para muitos mesmo impossível. Mas nisso reside, precisamente, o excesso da lógica do dom gratuito, em relação a todos os sistemas simplesmente «justos», se entendermos a justiça do ponto de vista puramente comutativo, retributivo ou distributivo.

Habitualmente, os sistemas económicos mais recentes - denominados genericamente capitalistas - assentam na lógica do lucro, pretendendo que esse seja o motor do progresso e desenvolvimento dos povos. Mas, sobretudo devido à recente crise económico-financeira global, parece tornar-se cada vez mais evidente que essa lógica não é absoluta e que parece não conduzir aos resultados que promete. Em realidade, apenas serve para realizar o interesse de poucos. Nesse contexto, Bento XVI lança o desafio à aplicação pragmática, nas relações económicas à escala global, da dimensão do gratuito, da dádiva desinteressada.



3. Porque só a lógica da dádiva permite criar verdadeira solidariedade humana, a nível planetário. Porque dela resulta a lógica da comunhão, única capaz de criar verdadeira comunidade humana, entre todos os povos e pessoas. De facto, o dom, dado a todos e para ser dado por todos, origina comunidade, no amor. Outro modo de relação entre os humanos e entre os povos apenas origina dinâmicas de poder, pois parte sempre de arrogantes pretensões da capacidade de quem toma a iniciativa. Muitas vezes, essa lógica do poder afecta mesmo aquilo que, externamente, parece dádiva, sobretudo na relação entre países ricos e países pobres. Ora, cada vez se torna mais evidente o fracasso a que está destinado um sistema que se baseia em relações de poder - poder como capacidade e poder como domínio.

É no sentido de superar esse modo de relação que Bento XVI lança a proposta de uma lógica de comunhão, assente no acolhimento de um dom que nos é dado e na prática desse dom, dando. Daí deve resultar uma nova lógica económica, assente precisamente na economia do dom e não na economia do poder e do lucro. Entenda-se aqui o termo economia como aquele âmbito em que se leva à prática das relações interpessoais e inter-institucionais a lógica da caridade, como pragmática e concretização dessa mesma lógica. É nesse sentido que cristianismo não se limita a dar indicações correctivas aos sistemas económicos. Pode acolher e mesmo propor certas práticas económicas como modos de dar corpo concreto à lógica do amor, ao serviço da qual se encontra. Esta lógica do amor pode ser energia moral para os sistemas económicos, que só estão ao serviço do ser humano se assentarem em convicções éticas.

Isso fará assentar os sistemas económicos e mesmo políticos numa lógica em que a dimensão ética, no bom sentido do termo, seja fundamental: trata-se da lógica da responsabilidade. Bento XVI, quando propõe esta lógica da responsabilidade pessoal e colectiva, local e planetária, pensa explicitamente na superação da pura lógica do mercado e da pura lógica do estado. A primeira, assente simplesmente no dinamismo do lucro, pensado individualmente, perde do horizonte a comunidade humana e cada pessoa concreta, conduzindo a desumanidades, que hoje se tornam cada vez mais evidentes e que acabam por se virar contra os seus próprios autores; a segunda, baseada em jogos de influências e em certo domínio colectivista, acaba por discriminar grande parte da humanidade, originando mais divisão do que comunhão. Toda a actividade económica e política, independentemente de os seus agentes serem ou não cristãos, deverá estar determinada pela lógica da responsabilidade total, caso queira servir verdadeiramente os humanos, sem discriminação de pessoas nem povos.



4. A última parte da Encíclica é dedica à exploração do significado de uma lógica própria, em que desembocam, na prática, todas as outras dimensões da lógica da caridade: trata-se da lógica da relação. Partindo de uma fundamentação teológica dessa lógica (precisamente por referência à relação trinitária, como fonte de todo o ser-em-relação), Bento XVI apresenta o modelo da relação familiar como fundamental para a compreensão do ser humano como ser-em-relação. Porque a relação familiar assenta na relação inter-pessoal, vivendo da relação entre pessoas livres, diferentes, que se amam. Por isso, supera todos os modos de relação assentes no poder ou na dissolução das diferenças pessoais.

Nesse sentido, considera importante, por exemplo, que se analisem criticamente outras tradições religiosas, pois podem colocar em risco este modo de relação, no respeito da liberdade pessoal. Os sistemas de organização social encontram aqui o critério da sua avaliação, pelo menos na perspectiva cristã, que se pretende universal. Ou são respeitadores de cada ser humano, na sua integridade, e respeitadores de todos os seres humanos, na sua igualdade, ou não fazem parte da lógica da caridade, que é a verdade de Deus para os humanos.

E com base nessa posição, simultaneamente dialogante e crítica, que a lógica da caridade se propõe como verdade para todos. Ao propor-se, assume uma tarefa pública, que terá que arrancar o cristianismo da pura reunião de sacristia. Ao mesmo tempo, sendo uma proposta pública, entra no diálogo com outros crentes e mesmo com os não crentes. Porque a finalidade da lógica da caridade é, precisamente, a relação no respeito pelas diferenças. Mas a lógica da caridade só é autêntica se se assumir como lógica da verdade, proposta para todos. É nesse sentido que deverão ser lidas estas densas páginas, que Bento XVI dirige a todos os cristãos, assim como a todos os humanos de boa vontade. Mas, como a verdade é para ser feita, esta é só a primeira parte de uma proposta cristã para o nosso mundo contemporâneo.

João Manuel Duque, teólogo, secretário da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé e Ecumenismo

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